“A dificuldade de valorizar o trabalho de cuidado acontece porque ele é realizado por mulheres”, afirma especialista
Por: GIFE| Notícias| 10/03/2025
Foto: Unsplash
Quem calcula quanto tempo dedicamos ao cuidado com a casa e com pessoas? Tarefas como dar banho, cozinhar, amamentar, faxinar a casa, comprar os alimentos, cuidar das roupas, prevenir e remediar doenças, envolve muitas horas dispensadas. Tarefas que historicamente foram designadas às mulheres, normalmente sem remuneração.
Segundo estudo da Oxfam, o trabalho de cuidado recebe 12,5 bilhões de horas diárias de dedicação de mulheres e meninas ao redor do mundo, uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global. Além disso, são elas as responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado realizado no mundo.
Para entender como repensar as estruturas sociais e econômicas para valorizar e redistribuir de forma justa esse trabalho fundamental, o GIFE conversou com Maíra Liguori, diretora da Think Olga e Think Eva, organizações irmãs que buscam sensibilizar a sociedade para as questões de gênero e intersecções.
De que forma você avalia que o trabalho do cuidado tem sido historicamente observado pela sociedade, e quais os principais desafios para que ele seja valorizado?
O trabalho de cuidado é essencial. Ele foi historicamente atribuído às mulheres de maneira estratégica, de forma que, feito dentro de casa, não seja visível aos olhos da sociedade ou do mundo produtivo. Foi sendo entendido como algo que não era passível de remuneração, e sim uma obrigação. A partir da maior participação das mulheres no mercado de trabalho, nos anos 1970, começamos a ver a necessidade de conciliação com o trabalho remunerado, e o trabalho de cuidado começou a ser um pouco mais debatido. A dificuldade de se valorizar acontece porque ele é realizado por mulheres e, no nosso país essencialmente, de baixa renda. São as trabalhadoras domésticas, enfermeiras, professoras primárias, que não por acaso são a parte mais baixa da nossa pirâmide social.
Em que medida a desvalorização do trabalho de cuidado influencia a dinâmica econômica e o desenvolvimento social de um país?
A primeira implicação é a sobrecarga das mulheres e a impossibilidade de prosperidade. O tempo que elas estão cuidando, não estão estudando, trabalhando, descansando. O cuidado onera as mulheres, isso faz com que elas sejam um grupo social menos autônomo economicamente que os homens, e muito sobrecarregadas, inclusive com questões de saúde mental e física decorrentes. Temos poucas redes, aparatos ou espaços públicos de cuidado. Na economia de um país isso também tem uma grave consequência, primeiro porque temos metade da força de trabalho fora do mercado. Segundo que o trabalho de cuidado é contínuo, e se fosse remunerado seria um dos maiores contribuintes para o PIB nacional.
De acordo com levantamento do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, as mulheres negras equivalem a 45% das pessoas que atuam em serviço de cuidados. As mulheres brancas são 31%; e os homens, sejam brancos ou negros, equivalem a 24%. De que maneira o trabalho de cuidado reflete as desigualdades?
O trabalho de cuidado é invisível, e quando remunerado é entendido como um sub-trabalho, que exige menor qualificação, o que não é verdade. No nosso país, essa construção se deu calcada na escravização das mulheres negras. Eram elas que cuidavam da casa e das crianças dos seus senhores, e não ganhavam nada por isso. Com o encerramento gradual da escravização, elas não tiveram nenhuma forma de inserção social qualificada, e continuaram morando nessas casas. Essa é uma estrutura que segue até hoje, existem famílias que ainda têm suas trabalhadoras domésticas morando em casa, sem salário. As cuidadoras de idosos, enfermeiras, diaristas e trabalhadoras domésticas foram, aos poucos, conquistando direitos. Como a PEC das Domésticas aprovada em 2013, ou seja, “ontem”. Ainda temos uma herança escravocrata que não se dissipou, é algo que perpetua essas desigualdades.
Como as iniciativas de responsabilidade social corporativa podem estar alinhadas com as necessidades da Economia do Cuidado?
Hoje há um debate maior nas empresas, algo muito recente, mas muito poderoso. No Brasil metade dos lares são chefiados economicamente por mulheres, o que demonstra a necessidade de participarem da força de trabalho. Mas a gravidez, o cuidado com os filhos e com os idosos são responsabilidades de difícil conciliação com o trabalho remunerado. Então, quando empresas debatem isso, elas precisam revisitar sua cultura e encontrar maneiras de possibilitar essa conciliação. Entre as iniciativas importantes, estão as possibilidades de flexibilização do trabalho, jornadas flexíveis e trabalho remoto para mulheres cuidadoras. Também são importantes políticas de apoio à gestante e a puérpera. Além do incentivo para que homens busquem seus filhos na escola, levem ao pediatra, participem das reuniões escolares, se impliquem no cuidado e as mulheres deixem de ser as únicas penalizadas por essa necessidade.
De que forma o Investimento Social Privado (ISP) pode colaborar para a construção de uma agenda de cuidado que combate às desigualdades?
A primeira frente seria o advocacy, ainda necessitamos de um debate no legislativo para implementação de políticas obrigatórias nas empresas. Como a demissão de mulheres grávidas ou até dois anos após o nascimento do bebê, que no Brasil tem escalas alarmantes. Trabalhos de apoio às mães solo é de extrema importância. Outra frente é a educação sexual e saúde reprodutiva das mulheres, apoiar meninas vítimas de estupro a acessarem o aborto legal, incentivar programas de educação sexual nas escolas, apoiar adolescentes grávidas para que possam concluir sua formação inclusive na faculdade. Além da elaboração de estudos e campanhas para incentivar a distribuição do cuidado, para que homens também possam se implicar nessas tarefas e dividir essa carga, que hoje só não acontece por uma questão cultural.