Brasil integra monitoramento sobre questões legais que afetam a sociedade civil e as liberdades cívicas em 54 países

Por: GIFE| Notícias| 22/06/2018

Em 2016, às vésperas dos Jogos Olímpicos, o Brasil aprovou a chamada Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16), resposta à pressão externa do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – GAFI, do qual o país faz parte. A lei introduziu uma classificação muito vaga do crime de terrorismo, o que poderia levar ao aumento da criminalização dos movimentos sociais e organizações.

Desde então, tentativas de recrudescer a atuação da sociedade civil com leis complementares têm acontecido. Uma das mais recentes, em fevereiro deste ano, de autoria de um deputado do Rio Grande do Sul, pretende alterar a definição de terrorismo e quais atos são enquadrados como tal, e o teor da proposta aponta a possibilidade de criminalizar movimentos que atuam na luta pela terra e pela moradia.

O Brasil não possui legislações estritas, como outros países do oriente médio, da África e de outras partes do mundo, de cerceamento sobre a atuação de movimentos sociais, organizações e ativistas. Ao contrário, a atual Constituição define o Estado brasileiro como Estado Democrático de Direito, no qual o pluralismo político e a participação cidadã nos assuntos públicos são princípios primordiais. No entanto, nos últimos anos, restrições, perseguição e violações de direitos se tornaram mais frequentes contra líderes e ativistas de movimentos e organizações sociais.

“Temos um contexto em que existe um maior recrudescimento da legislação mundo afora para esse espaço cívico. O mundo hoje tem uma crise de representatividade, e as pessoas não se sentem representadas pelos partidos e pelas instituições públicas. E isso, de algum modo, acaba ocasionando um movimento no sentido de uma maior regulamentação por parte dos governos”, avalia Paula Storto, sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Rosa e Figueiredo Lopes Advogados.

Paula é uma das autoras do relatório sobre o Brasil para o Civic Freedom Monitor, organizado pelo The International Center for Not-For-Profit Law (ICNL). O trabalho do ICNL fornece informações atualizadas sobre questões legais que afetam a sociedade civil e as liberdades cívicas, e hoje reúne relatórios sobre 54 países, dentre os quais Afeganistão, China, Colômbia, Equador, Egito, Índia, Líbano, México, Rússia, África do Sul, Sudão, Turquia e Venezuela.

“O Civic Freedom Monitor – anteriormente conhecido como ONG Law Monitor – foi lançado em 2001 e tem crescido desde então. Nos anos mais recentes, o conteúdo do Monitor foi expandido para incluir questões de liberdade de reunião, juntamente com a liberdade de associação e expressão, levando o ICNL a mudar o nome para Civic Freedom Monitor. A inclusão do Brasil é significativa devido à influência global e regional do pais”, avalia David Moore, do ICNL.

Dentre os países com problemas graves relatados, o ICNL destaca, em seu último relatório anual, China – com a Lei de Gestão de OSCs Ultramarinas que entrou em vigor em janeiro de 2017; Egito – onde o presidente aprovou lei extremamente restritiva à atuação da sociedade civil; Quênia – onde uma eleição disputada levou a uma repressão às OSCs, incluindo tentativa de cancelamento de registro da Comissão de Direitos Humanos; Nigéria – onde as OSCs estão mobilizadas contra uma proposta de lei para regular as atividades das organizações; e Venezuela – onde o governo anulou a Constituição por meio da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte sem aprovação prévia do povo venezuelano.

“No caso de governos menos democráticos, fica clara a conexão com intenção de prejudicar certos setores. No Brasil, uma democracia consolidada, essas questões ficam mais esparsas. Não temos leis especialmente desfavoráveis às organizações da sociedade civil, mas temos, a priori, uma legislação que mais atrapalha do que ajuda no caso das doações. E há a distância entre lei e realidade. Temos boas leis, mas nossos ativistas e jornalistas são presos e muitas vezes assassinados. Quando comparamos esses dados com a atividade que essas pessoas desenvolvem, fica claro que não é acaso. Muitos dos que fazem denúncias na área de meio ambiente, ou sobre a atuação da polícia, especialmente nas comunidades mais pobres, são assassinados”, analisa.

O texto sobre o Brasil aponta que, apesar de não haver restrições legais à capacidade de indivíduos ou organizações da sociedade civil criticarem o governo ou advogarem por causas pouco populares, como direitos humanos e democracia, não há incentivos e quase nenhuma proteção para quem realiza essas atividades. Ao contrário, o documento destaca que estudos de OSCs independentes revelam que o país é um dos mais perigosos para quem exerce a liberdade de expressão como atividade regular. No caso de jornalistas, por exemplo, a organização internacional Article 19 contabilizou 152 casos de violações graves contra comunicadores no Brasil entre 2012 e 2016. A impunidade nesses casos demonstra como a influência do poder local impede que sejam devidamente investigados e que seus autores sejam levados à justiça.

Protagonismo do STF e barreiras legislativas e tributárias

Outro ponto que se destaca no relatório do Brasil é o protagonismo que o Superior Tribunal Federal vem tendo, principalmente nos últimos anos, nessas agendas. “Citamos algumas decisões do Supremo, por exemplo, sobre a obrigatoriedade de os protestos e manifestações informarem e obterem autorização prévia para sua realização. Há também uma decisão sobre a Marcha da Maconha, importante porque assegura a liberdade de expressão e manifestação.  E no Rio de Janeiro, há uma lei estadual que proíbe o uso de máscaras em manifestações. O Supremo está para decidir se essa ação é constitucional ou não. Então, no caso do Brasil, o protagonismo do Judiciário nesse assunto chama atenção”, avalia Paula.

No âmbito do projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil (Sustenta OSC) – realizado pelo GIFE e pela FGV Direito SP, com apoio da União Europeia, Fundação Lemann, Instituto Arapyaú e Instituto C&A -, uma das pesquisas em andamento, conduzida pela FGV, aborda também ações judiciais relevantes para a agenda de sustentabilidade econômica das OSC no STF e STJ.

O relatório do Brasil para o Civic Freedom Monitor destaca o projeto Sustenta OSC ao abordar iniciativas propostas por organizações da sociedade civil para melhorar a sustentabilidade econômica: benefício fiscal para doadores individuais/pessoa física, isenção fiscal para doações de interesse público (ITCMD) e os fundos patrimoniais, além do chamado Simples Social, que propõe estender o Sistema Simples, regime de tributação já existente, às OSCs.

Em relação às barreiras às doações para organizações da sociedade civil, o documento aponta os desincentivos vindos da tributação e das regras bancárias, incluindo aqui, além da legislação estadual do ITCMD – que impõe um imposto sobre doação, independente da fonte -, as dificuldades em abrir contas bancárias, obter créditos e desenvolver relações financeiras.

Nesse último aspecto, a Associação Brasileira de Captação de Recursos (ABCR) desenvolve atualmente um projeto para construir um Marco Bancário da Doação. A proposta foi uma das selecionadas no primeiro edital do Fundo BIS – fundo brasileiro destinado exclusivamente para ampliar a cultura, o volume e a qualidade das doações no país.

Avanços com o MROSC e fortalecimento das organizações

O avanço trazido pelo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) também é destacado no material sobre o Brasil, tendo como marco inicial deflagrador do processo a atuação de uma coalizão de organizações da sociedade civil que pediu aos candidatos às eleições presidenciais de 2010 a priorização do desenvolvimento de um novo marco legal para as OSCs no Brasil.

O relatório elaborado para o ICNL pontua que, ao longo da administração da presidente Dilma Rousseff, essa agenda foi considerada prioritária, levando a uma série de diálogos que resultaram em uma reforma legal para fortalecer o papel da sociedade civil no Brasil e a definição de regras mais claras para a contratualização com o Estado.

“Já realizei outros estudos com pesquisadores do México, Peru, Panamá, Argentina e Brasil, para o próprio ICNL, em que avaliávamos a legislação de financiamento público para organizações da sociedade civil. Há uma aproximação no sentido de uma preocupação, em democracias mais recentes em especial, da possibilidade de cooptação das OSCs pelo Estado”, diz Paula.

No caso do Brasil, o processo até a aprovação do MROSC ocorreu a partir de diálogos entre 2011 e 2016, quando os desafios do ambiente legal e de financiamento para a sociedade civil eram claros. Embora o financiamento estatal estivesse disponível para as OSCs, não havia legislação que garantisse transparência a esse processo. A Lei 13.019/2014, que regulamentou as parcerias entre OSCs e autoridades públicas, trouxe regras, critérios e procedimentos objetivos para isso, buscando garantir mais clareza e estabilidade legal.

 

Atualizações

O relatório sobre o Brasil produzido para o Civil Freedom Monitor foi elaborado pelo escritório Szazi, Bechara, Storto, Rosa e Figueiredo Lopes Advogados a convite do ICNL, e deverá ser atualizado a cada três meses.

O material circulou entre instituições e pessoas relacionadas a essa agenda, buscando contribuições para a próxima versão. “Outros olhares e visões mais amplas são também importantes para agregar um cenário mais adequado. Temos a intenção de contar permanentemente com colaborações e propostas de melhoria com a participação de OSCs que atuam na prática do dia a dia”, avalia Paula.


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