‘Cidades sustentáveis’ é o assunto que abre a série especial do RedeGIFE sobre as contribuições do ISP em temas emergentes

Por: GIFE| Notícias| 28/05/2018

 

Hoje, mais de 54% da população mundial vive em cidades e a expectativa é que este número salte para quase 70% em 2050. Daqui a apenas 12 anos, a estimativa é que tenhamos no mundo 41 megalópoles com mais de 10 milhões de habitantes.

Diante de um cenário como este, assuntos como mobilidade, gestão de resíduos sólidos, saneamento, moradia, transporte e tantos outros extremamente relacionados à urbanização emergem, principalmente porque a pobreza extrema muitas vezes se concentra nestes espaços urbanos e as desigualdades sociais acabam sendo mais acentuadas. Só para se ter ideia, no Brasil já são mais de 11 milhões de pessoas vivendo em territórios periféricos das grandes cidades brasileiras.

Isso é o que vemos, por exemplo, na megalópole de São Paulo (SP), que conta com cerca de 2 milhões de pessoas nas regiões periféricas, marcadas por várias discrepâncias e falta de acesso a bens e serviços, se comparadas a outros espaços do município.

Segundo o Mapa da Desigualdade da Cidade, a diferença entre o pior indicador da cidade (Campo Limpo) e o melhor (Vila Mariana) – que a Rede Nossa São Paulo chama de “desigualtômetro” – é de 16,26 vezes. Ou seja, o risco de um jovem ser vítima de homicídio no Campo Limpo é 16 vezes maior do que na Vila Mariana. Em relação aos homicídios em geral – não apenas de jovens –, o pior distrito é o de Marsilac, no extremo sul de São Paulo, com 4,95 óbitos por 10 mil habitantes. O melhor indicador é em Moema, que registra índice de 0,114. Neste caso, o “desigualtômetro” entre os dois distritos situa-se em 43,30 vezes.

Outro número que evidencia a grande desigualdade existente entre as diferentes regiões da cidade é o de gravidez na adolescência. A porcentagem de nascidos vivos cujas mães têm 19 anos ou menos é 166 vezes maior em Perus (índice de 19,41% sobre o total de nascidos vivos) do que no Jardim Paulista (indicador de 0,117%).

Indicadores como estes impactam na construção e na gestão dos espaços urbanos, algo essencial para que o desenvolvimento sustentável seja possível.

“Por isso, o tema de ‘cidades e comunidades sustentáveis’ é foco, por exemplo, do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, que busca tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Uma cidade sustentável é aquela que coloca as pessoas em primeiro lugar quando vai definir as políticas públicas, criando condições de uma vida plena na ótica do desenvolvimento sustentável. Buscamos não olhar os ODS separados, pois todos estão interligados, mas o ’11’ tem um papel muito importante, pois a ONU afirma que a batalha para alcançar as metas vai ser ganha ou perdida dentro das cidades. É ali que vemos todos os demais ODS refletidos”, comenta Lorenzo Brunelli Casagrande, oficial de engajamento do Centro Rio+ (Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável), do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Não foi por acaso, portanto, que o tema de ‘cidades sustentáveis’ veio à tona durante o X Congresso GIFE e contou com uma mesa específica de debate sobre estas questões dentro do projeto ‘ISP por…’, ou seja, o que o ‘Investimento Social Privado pode fazer por…’.

Algumas iniciativas já vêm atuando nessa perspectiva e foram apresentadas no painel, como a da Fundação Tide Setubal, que apresenta uma atuação de mais de 10 anos na zona Leste de São Paulo, no estímulo e promoção do desenvolvimento sustentável, estimulando um novo olhar para a questão das periferias, onde as pessoas enfrentam condições de transporte, moradia, acesso à água muito complexas.

Outra iniciativa é do Instituto Vedacit que, ao apoiar a construção de cidades do futuro, aposta o seu investimento em ações de ocupação dos espaços públicos para integração das pessoas com esses espaços, empreendedorismo jovem nas periferias e habitação e moradia. Já o Fundo Socioambiental CASA busca o fortalecimento de vozes e ações locais para uma sociedade mais sustentável, a partir de projetos de hortas urbanas, mobilidade, e outras frentes, em regiões metropolitanas.

Todas as experiências compartilhadas têm em comum a atuação em parceria, envolvendo os diversos setores, como é o caso do Programa Cidades Sustentáveis, que vem realizando, há quase uma década, um trabalho de construção de ferramentas e incidência política para a melhorias da qualidade de vida nas grandes cidades.

Assim, o assunto, que começou a ser discutido durante o evento, devido à sua relevância, abre agora uma série especial de reportagens que o RedeGIFE prepara sobre o projeto, buscando trazer reflexões, debates e práticas a respeito das contribuições do investimento social em oito temas que ainda podem ser mais explorados e aprofundados pelos investidores sociais, ampliando seu engajamento em questões centrais do Brasil.

Nesta primeira matéria, a reportagem traz a opinião de especialistas, assim como um exemplo de uma fundação associada ao GIFE que tem se atentado ao tema de cidades sustentáveis e busca agora implementar novas iniciativas com este foco em São Paulo.

Contribuições do ISP para cidades sustentáveis

Lorenzo Brunelli Casagrande, oficial de engajamento do Centro Rio+ (Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável), do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento):

“A Agenda 2030 e os ODS – diferente dos ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio) – é mais abrangente e parte da compreensão do próprio conceito de sustentabilidade, que engloba as esferas social, ambiental e econômica, e traz o princípio de que ninguém deve ficar para trás. E, para que isso seja possível, é fundamental o movimento de toda a sociedade. Não há a expectativa que apenas o governo seja o pioneiro. É preciso que todos se coloquem no papel também de ser parte da solução dos problemas. Os ODS, portanto, ajudam as pessoas a definir prioridades e pensar maneiras de se exigir mudanças, seja no papel de consumidor consciente, seja como cidadão que exige que seu candidato elabore um plano de governo pautado nestas demandas, seja no apoio e criação de iniciativas mais inclusivas.

Acredito que a sociedade civil organizada tem o papel de orientar as suas prioridades, quais pontos que lhe preocupa mais, e estabelecer pressão no poder público, assim como ajudar na mudança de consciência, do que entendemos hoje por desenvolvimento. Estabelecer essa mudança de cultura parte de uma ampla mobilização de todos e de cada um.

Além disso, se o setor privado não se envolver nestas questões, não será possível atingir grande parte das metas estabelecidas pelos ODS. Vejo que algumas empresas têm até tomado a frente e sendo pioneiras em discutir como os seus negócios podem ser mais sustentáveis ou como podem promover negócios com mais impacto social, sem deixar de ter retorno financeiro.

A visão de que a sustentabilidade poderia ser uma barreira para o desenvolvimento econômico é uma falácia que temos cada vez mais desmentido. Precisamos nos ater que os consumidores estão mais conscientes . O que vemos é que o impacto negativo ou positivo da empresa cada vez mais irá embasar a opção do consumidor. Muitas empresas têm discutido a sua responsabilidade frente a este novo olhar do desenvolvimento e isso é essencial. Nós, no Centro Rio+, por exemplo, somos muito procurados por fundações para saber como podem se envolver no processo. Isso é um excelente indicador!”

Jorge Abrahão, coordenador geral do Programa Cidades Sustentáveis

“Para termos continuidade e visão de longo prazo numa cidade, temos que aprimorar o processo democrático, e isso se dá por duas questões. A primeira é pelos compromissos mais claros e transparentes dos governantes, com o estabelecimento do Plano de Metas, por exemplo, que tangibiliza em questões concretas as promessas de campanha. E, a segunda, é estimular e permitir que a sociedade tenha mais canais de participação. Precisamos lembrar que a sociedade permanece e quem muda são os governos. Se tivermos uma sociedade avançando no seu grau de consciência, vai dialogar com qualquer governo, e aí podemos garantir um avanço mais sustentável da sociedade.

Outro ponto fundamental é entendermos as desigualdades presentes nas cidades. Hoje temos um modelo concentrador de riqueza e renda. A cidade se divide em territórios muito desiguais, em que uns têm acesso à saúde, moradia, saneamento etc. e outros não. Sendo assim, acredito que o ISP poderia aproveitar todos os seus investimentos e, mais do que investir em projetos específicos, em localidades isoladas, atuar em aspectos mais amplos de transformação das cidades. Uma coisa é, por exemplo, ter um projeto que vai financiar uma ação em determinada escola. Claro que isso é importante. Mas, outra coisa é trabalhar com organizações que atuem para garantir o avanço do sistema municipal de educação. E isso vale para todas as áreas, saúde, mobilidade etc.

Há questões estratégicas que são fundamentais para as cidades evoluírem na direção da redução das desigualdades, essenciais para a sustentabilidade, e o ISP com a potência que tem, pode colaborar e muito. Isso não é fácil de fazer, é muito mais complexo do que se investir o recurso em determinado ponto, mas é extremamente necessário. O investimento social não deveria aplacar os desejos individuais que as empresas têm, por exemplo, mas ir além. Os investidores sociais precisam fazer um exercício de compreensão onde aquele recurso poderia efetivamente chavear processos que têm impacto na sociedade. Me parece que deveria ter uma reflexão do ISP ser mais valioso e fortalecer outras iniciativas. Concentrar menos suas ações e sim entender que uma sociedade civil forte é importante para o país. E isso se dá fortalecendo organizações da sociedade civil que já atuam nesta perspectiva.

E reforço: talvez o ISP tenha que ser mais ambicioso no sentido de gerar transformações que vão se dar em escala. Ele deve ser mais político também. As empresas se utilizam das políticas – do seu advocacy – do ponto de vista de avançar em seus projetos. Podem aproveitar esse conhecimento para impactar em políticas públicas, em transformações mais coletivas da sociedade. Isso é difícil porque implica numa visão de longo prazo. Por isso, é importante que os conselhos de administração comecem a ter uma visão mais holística da sociedade para que as empresas possam contribuir com as melhorias necessárias”.

Na prática: Fundação Tide Setubal

O tema de ‘cidades sustentáveis’ na Fundação Tide Setubal é conectado com o trabalho realizado há uma década na zona Leste de São Paulo, com iniciativas nas áreas de cultura, esporte, educação, assistência social, voltados para jovens e famílias e orientados por inclusão social, empoderamento e redução das desigualdades.

Depois de 10 anos de aprendizados, a Fundação decidiu ter um olhar mais amplo para a cidade, para outras periferias, e estabelecer uma atuação mais abrangente. A missão passou a ser de fomentar iniciativas que promovam a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e que contribuam para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do mercado.

“A partir do nosso trabalho de desenvolvimento comunitário na zona Leste de São Paulo, percebemos que de fato é preciso se envolver num movimento comunitário para mudar o urbanismo, para que estes territórios sejam integrados à cidade. É necessário uma política urbana que olhe para estes espaços e o ISP pode ajudar muito. Por isso, começamos a olhar outras periferias e como é possível integrá-las à cidade, tendo em vista a grande segregação socioespacial que existe. São regiões com problemas habitacionais agudos, saneamento básico precário ou inexistente, moradias em áreas de risco, e acessibilidade urbana prejudicada pelo transporte público caro e que exige longos percursos diários. Passamos a discutir como fazer um processo de transformação destes territórios, que precisam de muito mais investimentos.”, comenta Paula Galeano, superintendente da Fundação.

Tendo isso em vista, a Fundação tem investido em várias novas iniciativas. Uma frente é de advocacy, a fim de pautar a questão do orçamento, ou seja, como é feito o gasto público. “Hoje, não se tem uma visualização espacial da execução do orçamento público. E isso é fundamental para levarmos mais recursos à periferia”, destaca Paula.

Nesse sentido, a Fundação estabeleceu uma coalizão com outros atores, como a Rede Nossa São Paulo, Oxfam e Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, a fim de desenvolver alguns estudos, que já estão em andamento, para verificar, primeiro, se é possível ter esse olhar territorial a partir dos dados já disponíveis, e indicar novos caminhos necessários também.

“O que percebemos é que, da maneira como hoje é disponibilizada a informação pelos governos, não é possível sabermos onde os recursos são investidos territorialmente. Às vezes uma informação por distrito é pouca. Seriam necessários outros dados para ver onde foi o benefício direto da política pública. Entendemos que este tipo de informação é muito importante porque as pessoas vão se envolvendo quando conseguem ver o que tem sido feito localmente de fato. São dados fundamentais para as associações comunitárias, organizações de moradores, por exemplo”.

Outra iniciativa criada pela Fundação é o projeto Vozes Urbanas, que promove um debate por mês, envolvendo moradores da periferia, representantes da academia, de organizações da sociedade civil, empresas etc., a fim de promover um diálogo em relação às questões socioterritoriais e pautas que podem contribuir para a diminuição das desigualdades nas cidades. Entre os temas já debatidos estão empoderamento feminino, gênero e raça.

Há ainda um movimento da Fundação de levar a experiência local de São Miguel a outras localidades da cidade, como a realização do Festival do Livro, estabelecendo um circuito literário em cinco periferias. Já na própria região da zona Leste, o Galpão de Cultura e Cidadania está se transformando em um espaço compartilhado de trabalho, com apoio a projetos de empreendedores.

“Acreditamos que o ISP tem muito potencial para olhar os territórios. Precisamos estimular que todos os setores possam se envolver em questões urbanas. Não temos ainda fundações ou institutos dedicados exclusivamente ao urbanismo, mas a agenda de cidades sustentáveis é ampla e o ISP pode se encaixar em vários eixos. Há muitas frentes para colaborar. Hoje, há uma tendência da concentração das pessoas nas metrópoles e não tem como o ISP não olhar para isso e para estes territórios dentro das metrópoles, as periferias, que vivem situações de vulnerabilidades extremas. É preciso lembrar que não é possível dizer que qualquer cidade é sustentável se tem esse grau de desigualdade dentro do próprio município. Precisamos atuar nestes espaços”, pondera Paula.


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