Crise de dados no Brasil demanda mais valorização das ciências e comprometimento com a transparência
Por: GIFE| Notícias| 02/05/2022“Estudo mostra falta de transparência em quase metade dos dados para acompanhamento das ações do Ministério do Meio Ambiente.” “Maioria dos Tribunais de Contas não é transparente, diz relatório de ONG.” “Relatório denuncia falta de transparência sobre Cadastro Ambiental Rural (CAR) e ações em terras indígenas.”
O que essas manchetes têm em comum? Todas dizem respeito ao desafio da questão da produção, do tratamento e da disponibilidade de dados no Brasil. Segundo a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.537/2011), deve haver dois tipos de transparência: a ativa, com a publicação de informações de interesse público nos sites dos governos, e também a passiva, com a possibilidade de solicitar informações e documentos.
Sabine Righetti, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e criadora da Agência Bori, fundada para apoiar a cobertura da imprensa de todo o país à luz de evidências científicas, explica que se trata de uma legislação recente, regulamentada há 10 anos, e que, por isso, governos e setores ainda estão se estruturando no sentido de criar equipes internas para trabalhar com dados e disponibilizá-los.
A missão, agora, é analisar o que funciona e o que precisa ser melhorado. “Ainda há informações disponibilizadas, por exemplo, em formatos de difícil leitura, como PDF. É importante, portanto, que a gente trabalhe para melhorar os mecanismos de transparência de dados que ainda estão se institucionalizando.”
Dados na saúde pública
A disponibilidade de dados devidamente pesquisados e tratados é de interesse de uma multiplicidade de setores, entre eles a saúde. Em junho de 2020, diante de inúmeras mudanças na forma de divulgação das informações da pandemia pelo Ministério da Saúde, as equipes dos veículos G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL decidiram somar esforços para disponibilizar, diariamente, um material apurado junto às Secretarias Estaduais de Saúde.
“Vimos recentemente bases importantíssimas de dados, como o DataSUS, ficarem fora do ar por mais de um mês em plena pandemia. Isso não pode acontecer”, comenta Sabine. A falta de outras informações, mesmo que não diretamente ligadas ao setor da saúde, também influenciam planejamentos públicos, como a vacinação, por exemplo, já que não se sabe ao certo o tamanho ou a distribuição da população, dificultando o cálculo das doses necessárias de um imunizante, como o da Covid-19.
O último Censo Demográfico, pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, é de 2010. Com abrangência geográfica nacional, o levantamento é, segundo o próprio site oficial, “a principal fonte de referência para o conhecimento das condições de vida da população em todos os municípios do país e em seus recortes territoriais internos.”
Entretanto, a pesquisa, prevista para acontecer em 2020, no aniversário de 10 anos da edição anterior, foi suspensa inicialmente por conta da pandemia de Covid-19 e, depois, por falta de recursos.
A relação entre dados e progresso
Muitos setores da sociedade foram duramente impactados por medidas em decorrência da pandemia de Covid-19, como a educação. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) estima que mais de 582 milhões de estudantes foram afetados no mundo todo, simultaneamente, em razão do fechamento temporário de escolas obedecendo às recomendações de distanciamento social.
A omissão e atraso por parte do governo brasileiro em oferecer o auxílio emergencial para as populações mais necessitadas aprofundou as desigualdades e trouxe desafios e questões já antes superadas, como a volta do país ao Mapa da Fome. Nesse cenário, adolescentes e jovens viram a necessidade de ajudar a complementar a renda, deixando de lado a atenção e dedicação aos estudos.
No caso da educação, Sabine cita a importância de pesquisas como o Censo da Educação Básica, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Ministério da Educação (MEC). O levantamento faz uma análise detalhada dos aspectos estruturais das escolas públicas e privadas de todo o país.
“Hipoteticamente, se decidirmos que as aulas de ciências devem ser experimentais, então precisamos olhar para os dados. O Censo de 2019 mostra que uma em cada 10 escolas do país, entre públicas e privadas, têm laboratório de ciências. Uma política nessa área exigiria mudanças importantes nas escolas para garantir ensino experimental em toda a rede do país. É necessário olhar os dados antes de tomar qualquer decisão ou criar uma política educacional”, explica Sabine.
Definir os próximos passos e medidas com base em pesquisas e evidências não é, entretanto, o que acontece em muitos casos no Brasil. No início de abril, diversos veículos noticiaram que o governo federal destinou R$ 26 milhões de recursos do MEC para a compra de kits de robótica para escolas de pequenas cidades de Alagoas que contam com desafios de infraestrutura básica, como falta de salas de aula, de computadores, de internet e até de água encanada.
“Em todos os setores precisamos de dados para desenhar políticas públicas certeiras porque, sem isso, é como se os gestores estivessem navegando sem rumo. Como é possível tomar uma decisão sem conhecer o tamanho do problema?”, questiona a pesquisadora.
A um cenário já complexo, somam-se outros desafios, como a crise que atravessa o Inep, que já realizou demissões em massa e passa, segundo Nota Técnica do Todos Pela Educação, por um ‘longo enredo de corrosão da instituição, que se prolonga desde o primeiro ano deste governo.’
O documento ressalta que grande parte dos problemas devem-se a fragilidades técnicas e administrativas da atual gestão. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o Inep já contou com quatro presidentes, o que dificulta a continuidade de ações. “Uma gestão em crise, com mudanças recorrentes de dirigentes e, claramente, com pouca preocupação com dados, não vai se preocupar com ampliar o acesso à informação”, aponta Sabine.
O olhar do Investimento Social
Apesar de o Brasil estar entre os 15 países que mais produziram artigos científicos em todo o mundo, a ciência e a informação não são valorizadas como deveriam. O tema foi discutido no Guia O que o Investimento Social Privado pode fazer por Ciência e Informação, que aponta estratégias para que as instituições do ISP possam aumentar sua atuação e engajamento no setor.
Entre os caminhos apontados estão: investimento em ciência, promoção da diversidade na ciência e gerar mobilização e debate público.
O material conta ainda com números que ajudam a explicar os motivos pelos quais a valorização das ciências e do trabalho de pesquisadores está longe do ideal. Além da falta de infraestrutura nas escolas, que não contam com laboratórios, cerca de 55% dos jovens brasileiros não possuem o nível básico de conhecimento em ciências, segundo a edição de 2018 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).
A falta de incentivo desde cedo pode acarretar adultos descrentes na importância das ciências. O estudo Wellcome Global Monitor, que ouviu mais de 140 mil pessoas, constatou que, no Brasil, 23% consideram que a produção científica pouco contribui para o desenvolvimento socioeconômico do país, e apenas 4% da população visita os museus de ciências no país.