O Instituto Cidades Sustentáveis lançou o Mapa da Desigualdade entre as Capitais Brasileiras. A pesquisa apontou para um cenário alarmante de desigualdades, sobretudo no Norte e Nordeste, localidades que possuem no geral maioria da população índígena e negra. No especial redeGIFE de abril, fomos em busca de especialistas e atores/atrizes do investimento social para entender como enfrentar esta “herança colonial” e proporcionar uma cidade mais digna para todos/as
Um dos mais renomados intelectuais brasileiros, o geógrafo Milton Santos dizia que a atividade econômica e a herança social são responsáveis por “distribuir desigualmente o homem no espaço”. Falar da relação cidade-cidadão em território brasileiro é uma forma de substancializar essa lógica em um país cuja herança escravocrata permanece presente, como revela o Mapa da Desigualdade entre as Capitais Brasileiras, publicado em março pelo Instituto Cidades Sustentáveis.
“Esse é o grande mistério das cidades: elas crescem e se modificam, guardando porém sua alma profunda apesar das transformações do seu conteúdo demográfico, econômico e da diversificação de suas pedras.”
MILTON SANTOS
O estudo apresenta os extremos entre as capitais brasileiras. De modo geral, as capitais do Norte e do Nordeste são as que ocupam as últimas posições do ranking, que analisa 40 indicadores sociais. Em paralelo, os primeiros lugares estão concentrados no Sul e Sudeste. Das 16 capitais do Norte e Nordeste, 15 figuram entre as que têm piores indicadores sociais. A capital mais desigual é Porto Velho, e a menos, Curitiba.
Para explicar esse cenário, Carina Serra, coordenadora nacional do BrCidades, sugere olhar para o passado e para o próprio processo de formação nacional. Ela lembra que, desde o Brasil Colônia, o Sudeste já se destacava pela produção do café.
“Mas foi no século 20 que a desigualdade regional entrou no debate público, porque começou a se aprofundar. Isso porque, com o processo de industrialização nacional, entre as décadas de 20 e 70 a concentração das indústrias ainda foi no Sudeste”, explica.
Árley Samá, diretor executivo do Studio Arandela, defende que os números apresentados pelo Mapa são reflexo de como se escolheu desenvolver o território brasileiro. “No Nordeste, os processos de escravização e genocídio dos povos negros e indígenas aliado a um processo de acúmulo de capital, concentrando poder e terra nas mãos de poucos, e a industrialização tardia da região, contribuem majoritariamente para este cenário.”
As desigualdades regionais observadas pelo levantamento do ICS se destacam principalmente em áreas como renda, saúde e segurança pública. Carina Serra lembra que as áreas citadas dependem muito da quantidade de investimento público feito. “Direito à cidade significa que todos e todas consigam ter acesso à moradia, lazer, emprego e todas as estruturas que uma cidade deve oferecer.”
Questões que também impactam territórios que estão para além das capitais. Oitavo município mais populoso da Região Metropolitana do Recife (RMR), Camaragibe é um dos exemplos disto. Com uma população de 147.771 pessoas , sendo 67,6% negras (IBGE 2022), apenas 1,11% desse grupo possui acesso a serviço de esgotamento sanitário, como mostram dados do Instituto Água e Saneamento. Além de ser uma dos municípios da região que mais sofrem com deslizamento de terra.
Coordenadora da Iniciativa Favelas Camarás – que atua com o intuito de mitigar as vulnerabilidades nas comunidades de Camaragibe – Biatriz Santos afirma que as condições precárias que muitas comunidades do município enfrentam exibem o retrato de um Brasil resultado de uma abolição mal sucedida. “Hoje a gente entende que as piores terras, os piores espaços ocupacionais no território são ocupados pela população negra. Áreas de morro, becos, periferias, comunidades, áreas descobertas, áreas que não têm CEP, áreas sem registros, áreas com alta periculosidade.”
Na falta do compromisso público, são ações como a Favelas Camarás que oferecem atenção e cuidado a população. Nessa esteira também atua a Fundação Feac, que tem como um de seus pilares o Desenvolvimento Territorial, investindo em iniciativas que fortalecem o tecido social e econômico de periferias.
“Entendemos o bem-estar social como a presença simultânea de um conjunto de fatores de que uma pessoa precisa para gozar de uma boa qualidade de vida, com emprego digno, recursos econômicos, lazer com tempo e qualidade, um lar seguro e, principalmente, a garantia do acesso às políticas e equipamentos públicos”, pondera José Roberto Dalbem, diretor executivo da Fundação Feac.
Para Dalbem, embora as capitais sejam indutoras fundamentais do desenvolvimento sustentável para superar o cenário de disparidade, é importante o fortalecimento da abordagem regional dentro dos estados.
Percepção que Daniela Pavan, gerente executiva de sustentabilidade e do Instituto Center Norte, também compartilha. “Para criar ações de alto impacto, é importante que as empresas privadas incorporem em suas agendas, juntamente ao poder público, um plano 360º de urbanismo social, compreendendo de forma holística as demandas das comunidades locais”, pondera.
Os indicadores do Mapa são baseados nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, agenda mundial estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), com 169 metas a serem atingidas até 2030.
Focando especificamente no território brasileiro, Carina Serra reforça a necessidade de se pensar desenvolvimento regional, ordenamento territorial, novos investimentos e a base da infraestrutura econômica nas regiões. A arquiteta também chama atenção para a importância do diálogo com as questões ambientais locais, considerando, por exemplo, os biomas de cada região.
No caminho de pensar soluções, Árley Samá já observa bons cases no país. “Felizmente o Brasil apresenta uma série de soluções desenvolvidas para o enfrentamento dessas questões e a ampliação do acesso a direitos.”
Entre as iniciativas apontadas, estão Redes da Maré, no Rio de Janeiro (RJ); G10 Favelas; Central Única das Favelas – CUFA; as iniciativas de urbanismo social em Paraisópolis, em São Paulo (SP), que também tem iniciativas de hortas comunitárias; o Programa Mais Vida nos Morros, em Recife (PE); a Urban95, que se propõe pensar a cidade com e para as crianças; o Centro Municipal de Inovação COLABORE, espaço de coworking em Salvador (BA); a Doca 1, Polo de Economia Criativa também em Salvador (BA); e o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste , apontado por Carina Serra como ‘iniciativa importantíssima no Brasil”.
Urban 95 | Praça da Alegria foi revitalizada por meio do Mais Vida nos Morros (Valeria Cristina da Silva/Prefeitura de Recife)
Cuidadores usufruem de espaços revitalizados em comunidades, juntos das crianças (Valeria Cristina da Silva/Prefeitura de Recife)
Para Arley Samá, o investimento social privado é um aliado importante na expansão de direitos e efetivo enfrentamento das desigualdades. Investimento que, ressalta, precisa ser norteado por indicadores sociais, ambientais e de governança (ESG) sólidos e que “apresentem uma Teoria da Mudança baseada em dados e que consigam materializar esse enfrentamento”.
Ponto também defendido por Daniela Pavan, que ressalta a importância da união do ISP com o poder público. Ela afirma acreditar “muito no poder da articulação para maximizar os impactos positivos para a cidade e a sociedade”.
Arley Samá ressalta ainda que as ações precisam alcançar as diversas regiões do país, sendo um dos caminhos “a clusterização regional do ISP tendo Hubs em cada região do Brasil, visto que a grande dificuldade de organizações do Nordeste, principalmente as de menor porte, está na distância entre quem decide como será aplicado o recurso e quem está na ponta executando as ações e projetos”, finaliza.
Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
Geovana Miranda
ANALISTA DE COMUNICAÇÃO
Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO
Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO