Impacto da nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro em debate

Por: GIFE| Notícias| 10/07/2018

Sancionada em abril de 2018, depois de alguns anos de tramitação no Congresso Nacional, a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei 13.655/2018 – LINDB) promoveu alterações sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do direito público. Dentre suas previsões está o reforço do dever de motivação, a responsabilização pessoal do agente público em determinadas situações e a previsão da necessidade de regime de transição para quando decisões de ordem administrativa, controladora ou judicial estabelecerem interpretação ou orientação nova sobre norma.

Diante desse cenário, que influi na relação entre organizações da sociedade civil e poder público, o OSC em Pauta, em parceria com o Diálogo Paulista entre órgãos de controle e OSCs, promoveu, no final do mês de junho, uma reflexão sobre quais as perspectivas de mudança com a nova lei e o impacto para os órgãos de controle e organizações da sociedade civil decorrentes.

Representantes da administração pública, órgãos de controle (tribunais de contas, controladorias e corregedorias), lideranças da sociedade civil, especialistas e acadêmicos com propósito de aperfeiçoar o controle das parcerias se reuniram para debater o tema.

Dentre os pontos levantados ao longo do evento sobre o impacto da aplicação da nova redação da LINDB às parcerias entre poder público e OSCs, estão: (1) reforço do dever de motivação e de consideração acerca dos efeitos práticos da decisão; (2) relevância das medidas compensatórias, aplicadas mediante critérios de proporcionalidade das sanções e determinações incidentes sobre OSCs; (3) possibilidade maior de sanear as irregularidades no decorrer das parcerias;  (4) eventual uso das consultas para superar dúvidas na aplicação da legislação de parcerias; (5) relevância de se divulgar boas práticas por meio de jurisprudência e súmulas; (6) necessidade de um olhar sobre particularidades das entidades e dos tipos de ações que desenvolvem, tendo em vista que os perfis institucionais de OSCs são muito variados.

Na abertura do evento, o diretor da FGV, Oscar Vilhena Vieira, destacou a percepção de que em diversos países e inclusive no Brasil, tem havido limitações aos espaços de liberdade da sociedade civil, seja por força de legislações, seja por práticas administrativas e de controle. “Essas restrições acabam reduzindo a capacidade de uma sociedade civil estar fortalecida e fertilizar o solo da democracia”, destacou. Esclareceu que é por essa razão que a FGV Direito SP e parceiros tem se dedicado em estudos e propostas de aperfeiçoamento do ambiente jurídico e institucional relacionado às organizações da sociedade civil.

O presidente do Tribunal de Contas do município de São Paulo, João Antônio da Silva Filho, avalia que “em um regime democrático, o futuro do controle externo formal exercido pelos Tribunais de Contas só terá mais efetividade se tiver interação com o controle social. A sociedade cada vez mais exige maior participação nas decisões, o que é o formato mais preciso e eficiente do controle de estado. Essa integração vai potencializar esse controle.” Ele lembrou a importância dos conselhos participativos existentes hoje no município como parte do ordenamento jurídico da cidade, e aponta que potencializar esse controle social, com o sentido de que as ações possam alavancar o controle do Estado, é o futuro da democracia no Brasil.

Renato Martins Costa, presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, concorda com João Antônio sobre a perspectiva de os Tribunais de Contas do Brasil firmarem-se cada vez mais na visão da sociedade. “As OSCS não devem ser entendidas como a solução única, perfeita, ideal para todos os problemas de suplementação ou substituição do Estado, mas igualmente não podem nem devem ser demonizadas como instrumento de apropriação pelo setor privado de recursos públicos. Há que se estabelecer equilíbrio entre as necessidades do poder público, as possibilidades de atender essas necessidades pelo poder público e aquelas organizações, seja em caráter suplementar ou substitutivo, a atuar na satisfação das necessidades sociais. ”

“Há que se ter mecanismos de controle. A edição da Lei 13.655/2018 traz aspectos que vêm absolutamente incrustrados no exercício de nossas atividades. Se tivermos que estabelecer qual o intuito geral dessa lei, poderíamos apontar dois fatores: estabelecer para quem decide, em qualquer esfera, uma perspectiva obrigatória de avaliação do consequencialismo de suas decisões; e, num segundo aspecto, tentar estabelecer segurança jurídica no processo decisório uma vez tomado, em qualquer das instâncias. ”

No entanto, o presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo manifestou duas ordens de preocupação. A primeira é o fato de a segurança jurídica repousar em alguns dispositivos que em si trazem insegurança para quem tem que interpretá-los, porque dotados de conceitos genéricos e pouco precisos, que dependem de avaliação ligada à experiência do intérprete. A segunda diz respeito ao consequencialismo, que lhe figura como perigoso na medida em que transfere, principalmente para as esferas controladora e judicial, a responsabilidade de muitas vezes determinar aspectos que, em sua avaliação, se encontram fora da capacidade de decisão dessas esferas.

“Se nossa realidade é decidir o processo, a visão de quem decide o processo é fracionária. Incide apenas sobre os atos que estão naquele processo. O administrador, quando decidiu, tinha uma visão ampla de suas possibilidades. Vamos fazer incidir sobre aquele ato administrativo, ao controlá-lo, uma visão absolutamente restrita ao que está ali descrito. Não creio que haja condição de apontar todas as consequências, ” pondera.

 

Segurança para inovação pública

Juliana Palma, coordenadora do Grupo de Direito Público da FGV Direito SP, avalia a nova LINDB como a lei da segurança para inovação pública. “Essa lei visa conferir conforto decisório para inovar. Ela dialoga muito com pesquisas acadêmicas e traz grandes pressupostos como a qualidade das decisões públicas – é preciso melhorar na esfera administrativa, é uma lei que pretende estabelecer como instituições podem dialogar e construir decisões mais qualificadas -; é uma lei de gestores da sociedade, do estado, e dá diretrizes interpretativas; estabelece confiança no gestor público honesto para que inove na gestão pública, porque ao inovar, muitas vezes, ele acaba errando, e as normas visam justamente amparar esse gestor público”.

Sérgio Andrade, da Agenda Pública – organização da sociedade civil que trabalha para aprimorar a gestão pública, a governança democrática e incentivar a participação social em todo o território brasileiro -, avalia como positiva a perspectiva de trabalho de controle e gestão em um ambiente de mais cooperação. “Problemas complexos existem, e muitas vezes o governo sozinho não consegue dar conta deles. Vejo como positiva essa legislação para esse ambiente novo, em que a sociedade civil coproduz soluções. Esse debate vem ganhando relevo, a coprodução de políticas públicas. ”

O procurado do Estado de Goiás, Rafael Arruda, avalia que a lei coloca grande ênfase no aspecto argumentativo, exigindo do administrador ou do controlador uma certa postura de colocar-se no lugar do outro ao tomar uma decisão. “Ao exigir que se faça isso, força-se assim a quem vai tomar a decisão a avaliar as consequências dessa própria decisão. O profissional da advocacia pública transita em terreno pedregoso, que é o limiar entre o jurídico e o político. Faz o controle, mas tem que viabilizar políticas públicas – nesse último caso às vezes em confronto com a lei. Muitas vezes outros órgãos de controle interno e externo, de maneira muito superficial, tomam decisões que embaraçam o fazer administrativo. Parece que a lei traz essa alvorada por uma administração em que a motivação passa a significar o colocar-se no lugar do outro, sobretudo no lugar do administrador público. ”

Durante os debates, surgiram posições antagônicas sobre a Lei, em especial com relação à visão sobre exequibilidade de alguns de seus dispositivos, entre outras críticas como constitucionalidade. Na sistematização do debate, o advogado Thiago Donnini destacou a importância de um espaço plural e tão qualificado como o deste encontro para contribuir com reflexões e avanços de entendimentos, o que foi amplamente valorizado pelos presentes.

 

Relação da LIDB com outras normas

No início dos debates, Gustavo Ungaro (Conaci) e Eden dos Santos Costa, auditor municipal de controle interno de São Paulo, destacaram os fundamentos constitucionais que embasam a Lei 13.655/2018, bem como a influência em outras normas, como é o caso do processo de regulamentação, no estado de São Paulo, sobre a lei de usuários do serviço público, que pode inaugurar mecanismos de participação direta para a avaliação de parcerias firmadas no âmbito da execução de políticas públicas.

A relação das alterações da LIDB com as diretrizes e previsões já constantes no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/14) foi objeto de destaque por gestores públicos, como Claudinéli Ramos, da Secretia de Cultura do Estado de São Paulo; Glória Almeida, do Departamento de Parcerias do Terceiro Setor da Prefeitura de São Paulo; e também por advogados como Rubens Naves, Paula Raccanello Stoto e Leonardo Ribeiro. Conforme ressaltou Paula Storto, previsões relevantes como segurança jurídica, eficiência, inovação e proporcionalidade estão presentes em ambas as legislações. “As OSCs só existem e só faz sentido ter parcerias do poder público com elas porque são autônomas. Acredito que, muitas vezes, falta conhecimento sobre o que são as organizações da sociedade civil e qual é o propósito das parcerias. É importante usar o instrumento da consulta pública antes de editar normas para que se oportunize mais o acesso a esse tipo de conhecimento”, enfatizou.

Com relação à disseminação de boas práticas, a advogada Laís Lopes, que foi assessora especial da Presidência da República durante a agenda de construção do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, destacou a experiência com a construção das ações da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA): “O processo de construção da ENCCLA foi muito interessante, pois foi baseado numa análise sobre as tipologias de irregularidades, comparando-as às previsões da então nova Lei 13.019. Neste processo, foram também construídas tipologias de regularidade e um relatório de boas práticas. Acredito que seria importante aproveitar esse diálogo para que, a exemplo da Charity Commision na Inglaterra, pesquisas sejam feitas a partir dos achados das auditorias e processos administrativos para que sejam criados os relatórios de boas práticas.”

Por fim, Aline Viotto, gerente de advocacy do GIFE, esclareceu a necessidade de um ambiente jurídico seguro mesmo para as organizações que não fazem parcerias com o Poder Público. “Muitas organizações mobilizam recursos privados e também para elas é importante que o ambiente jurídico seja seguro e capaz de fomentar o direcionamento de recursos privados para fins de interesse público”.

O debate foi articulado pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da FGV Direito SP, por meio dos pesquisadores Aline Gonçalves de Souza e Eduardo Pannunzio, juntamente com a Associação Paulista de Fundações (APF) e o Conselho Nacional de Controle Interno (CONACI). Esta edição do Diálogo Paulista entre Órgãos de Controle e Organizações da Sociedade Civil ocorreu  em parceria com a iniciativa OSC em Pauta no âmbito do projeto de pesquisa Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, realizado em parceria entre a CPJA da FGV Direito SP, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com apoio da União Europeia, Instituto C&A, Instituto Arapyaú e Fundação Lemann.


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