Mortalidade infantil é 23 vezes maior em Marsilac do que em Perdizes, aponta estudo

Por: GIFE| Notícias| 02/03/2020

Os cuidados com uma criança começam antes mesmo de seu nascimento com a realização de um pré-natal adequado e acompanhamento da saúde da gestante. Em seguida, é preciso se preocupar com um parto seguro para a saúde do bebê e da mãe. Com o filho nos braços, vêm os cuidados iniciais, como as consultas ao pediatra que, aos poucos, são somadas a preocupações que envolvem a infraestrutura urbana, como acesso a serviços básicos como esgoto, coleta de lixo e iluminação pública, vaga na creche, espaços de lazer e assim por diante. 

Em cada um desses fatores, existem diferenças abissais entre os índices dos 96 distritos da cidade de São Paulo. Expor e analisar esses contrastes é a proposta do Mapa da Desigualdade da Primeira Infância, produzido pela Rede Nossa São Paulo e Fundação Bernard Van Leer, com apoio do Programa Cidades Sustentáveis e Rede Conhecimento Social. 

Inúmeros indicadores representados no Mapa mostram que a sobrevivência, qualidade de vida e desenvolvimento de uma criança é, em grande parte, determinada pelo local onde ela nasce e vive. Em Engenheiro Marsilac, distrito do extremo sul da cidade, por exemplo, uma criança tem 23 vezes mais chances de morrer antes de completar um ano de vida do que uma criança em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. 

Com sua primeira edição lançada em 2017, o Mapa segue os mesmos parâmetros que outros produtos da mesma série: baseia-se em fontes públicas e oficiais para coletar dados de 26 indicadores em diversas áreas da administração pública de 96 distritos da cidade de São Paulo. A distância entre o melhor e o pior valor dentro de cada indicador é retratada no “Desigualtômetro”, termo cunhado pela série de estudos.  

Especificamente no tema da primeira infância, os indicadores analisados foram divididos em cinco áreas: contexto urbano, gestação, neonatal, primeiríssima infância e primeira infância. Para Fernanda Vidigal, coordenadora de programas da Fundação Bernard Van Leer, o Mapa deixa escancarada a grande disparidade de oportunidades entre as crianças paulistanas, realidade observada também em outros grandes centros urbanos brasileiros. 

O objetivo do mapeamento não é denunciar o governo, mas sim trazer à tona uma série de informações que possam ajudar a sociedade civil a monitorar melhor as políticas, assim como apoiar a tomada de decisões por gestores públicos. Fernanda menciona uma iniciativa já em curso na Prefeitura de São Paulo, o Plano Municipal pela Primeira Infância cuja vigência é de 2018 a 2030. 

“Nos territórios educadores, que correspondem às áreas mais vulneráveis da cidade, haverá um investimento maciço de recursos no intuito de diminuir muitas das desigualdades destacadas no Mapa. Além de melhoria da mobilidade e espaços para brincar e conviver, o município prevê testar alguns novos protocolos de integração de serviços e intensificar ações e serviços dentro dos desafios mapeados”, aponta a coordenadora. 

Território como fator determinante 

Além da mortalidade infantil, o levantamento traz outras informações que demonstram o quanto o local onde a mulher vive, engravida e dá à luz a seu filho interferem na vida da criança. A gravidez na adolescência, por exemplo, traz consequências à vida de milhares de meninas anualmente. Isso porque muitas delas precisam interromper seus estudos, o que, no futuro, poderá prejudicar sua inserção no mercado de trabalho. 

Em Moema, bairro nobre da capital paulista, 0,4% é a taxa de crianças nascidas vivas de mães com menos de 19 anos em relação ao total de nascidos vivos. Em Marsilac, o número passa para 18,9%, 53 vezes a taxa do primeiro. Fernanda reforça que as diferenças precisam ser olhadas com cautela e dentro do contexto de cada localização. “Marsilac é uma área mais rural. Portanto, estamos falando de uma região menos adensada em que o acesso aos serviços básicos de saúde é mais difícil, impactando tanto a frequência ao pré-natal como a locomoção ao hospital mais próximo”, explica. O pré-natal insuficiente, como cita a coordenadora, apresenta uma diferença de quase seis vezes entre Itaim Bibi e Cachoeirinha. 

Pulando de neonatal para primeira infância, outro dado que chama atenção é a incidência de violência sexual contra crianças de zero a cinco anos. Enquanto um levantamento do Instituto Sou da Paz aponta que, somente no terceiro trimestre de 2019, foram registrados 3.102 casos de estupro em São Paulo – sendo que em 74% dos casos as vítimas tinham até 14 anos -, o Mapa aponta que, no Capão Redondo, uma criança tem 86 vezes mais risco de sofrer violência sexual do que em diversos outros distritos da capital. 

Fernanda pontua que apesar da necessidade de análise do dado, considerando a relação entre pobreza, vulnerabilidade social, estresse e violência sexual, o cenário não expressa um desafio exclusivo de comunidades em situação de vulnerabilidade social. “Nas famílias mais vulneráveis, há maior permeabilidade na relação com a comunidade e convergência com a família, o que facilita a notificação. Já nas mais abastadas, este tipo de abuso ocorre de forma muito mais sorrateira, sendo mais dificilmente percebido pela comunidade e parentes. Em parte, perguntamo-nos se os dados refletem a realidade ou a realidade de notificações.” 

De qualquer maneira, a coordenadora ecoa a percepção da Fundação sobre o aumento de notificação dos crimes sexuais nos últimos anos. Para Fernanda, o movimento deve-se à realização de campanhas, assim como ao movimento feminista, uma vez que mulheres e meninas são as principais vítimas de abuso e violência. 

Infraestrutura urbana 

Quando o assunto é política pública para a primeira infância, a coordenadora chama atenção para a importância de considerar dados como o da mortalidade infantil, mas também ter um olhar mais orgânico para a cidade, focado não somente na saúde, educação e assistência social, mas também em áreas como mobilidade, planejamento urbano e natureza. 

“Dados como rede de esgoto, iluminação pública, arborização viária e ruas de lazer precisam ser olhados com mais cuidado, pois permitem maior proximidade aos serviços, caminhabilidade e convivência comunitária. Sabemos que ambientes acolhedores, receptivos e seguros onde é possível brincar e explorar, promovem o desenvolvimento emocional e cognitivo da criança.” 

O programa Ruas de Lazer, iniciativa da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (SEME), possibilita que moradores produzam um abaixo assinado e solicitem a criação de ruas de lazer em sua região. Segundo dados do Mapa, o Capão Redondo é campeão quando o assunto é quantidade de ruas disponíveis para lazer aos domingos, com quatro endereços, enquanto quase 80 distritos da cidade contam com apenas uma rua. 

Para Fernanda, o número de ruas nos espaços tem mais a ver com a apropriação da cidade pelas famílias do que com a prefeitura. Mesmo assim, somar esforços aos que a prefeitura têm feito para promoção do programa em outros distritos podem trazer bons resultados, uma vez que as ruas de lazer beneficiam não só as crianças, mas as famílias e comunidade em geral. 

“Parcerias com a mídia para divulgação do programa e com o setor privado para promoção de atividades culturais nesses espaços poderiam ser ótimas estratégias para ampliar e dar continuidade a essa iniciativa tão promissora.”

Contribuições 

As contribuições para reverter o cenário de desigualdades podem e devem vir de diferentes direções, desde moradores locais até ações do investimento social privado (ISP). Fernanda exemplifica que um comerciante local pode ajudar na zeladoria e manutenção de espaços de cuidados localizados próximos a seu estabelecimento, enquanto o ISP pode promover a sustentabilidade de ações no território. 

“Fundações e institutos podem contribuir com a qualificação das iniciativas, trazendo especialistas ou boas práticas do Brasil e do mundo. Além disso, podem dar maior agilidade a processos que seriam difíceis ou morosos para o governo. Conhecer a cidade em suas disparidades é outra opção que pode apoiar o setor privado a direcionar suas ações e projetos no campo social, contribuindo para minimizar essa gigante desigualdade”, afirma Fernanda. 

Saiba mais 

Confira aqui a apresentação do Mapa e neste link a pesquisa completa. 


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