Mulheres e populações negras, indígenas e quilombolas são as mais atingidas por retrocessos, segundo análise dos ODS no Brasil

Por: GIFE| Notícias| 16/09/2019

 

Em 2015, o Brasil e outros 192 países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) aderiram à Agenda 2030 e aos seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Quatro anos depois, há pouco a comemorar. É o que aponta o novo Relatório Luz, recém lançado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GTSC A2030).

Formalizado em setembro de 2014, o GTSC A2030 é resultado do encontro entre organizações não governamentais, movimentos sociais, fóruns e fundações brasileiras durante as negociações da Agenda 2030. Desde então, o coletivo atua na difusão, promoção e monitoramento dos ODS em âmbito local, nacional e internacional. Conheça neste link as demais organizações que compõem o GTSC A2030.

Produzida por especialistas de diferentes áreas de todas as regiões do Brasil, a publicação analisa a implementação dos 17 ODS no Brasil a partir de dados oficiais. A terceira edição do relatório analisa 125 das 169 metas e evidencia o acirramento das violações e o desrespeito aos direitos sociais, ambientais e econômicos em curso no Brasil.

O desafio não é pequeno. São 15 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, 55 milhões na pobreza, 34 milhões sem acesso a água tratada, mais de 100 milhões sem serviço de coleta de esgoto e quase 600 mil domicílios sem energia elétrica. Quase 50% da flora está sob ameaça radical, o campo e a saúde se veem ameaçados pela liberação de 239 novos tipos de agrotóxico. O desemprego já atinge mais 13 milhões de pessoas.

Com a manutenção das antigas e a criação de novas políticas contrárias à Agenda 2030, o Relatório Luz 2019 apresenta um Brasil que se afasta de um futuro sustentável.

“Os principais dados apontam retrocessos nos três campos: social, ambiental e econômico. A análise mostra que as desigualdades têm crescido de maneira geral. No entanto, com uma lente nas questões de raça, gênero e etnia, percebe-se que as populações negras, indígenas e quilombolas e as mulheres são as mais afetadas e em situação de maior vulnerabilidade”, observa Alessandra Nilo, coordenadora geral da GESTOS – Soropositividade, Comunicação e Gênero – uma das organizações integrantes do GTSC A2030.

O documento chama atenção para retrocessos traduzidos no desmonte do Ministério do Meio Ambiente, na proposta de reforma da Previdência e no pacote anticrime, nos ataques aos direitos de povos originários e tradicionais, na liberação de novos agrotóxicos e nos cortes na educação.

A publicação traz ainda 150 recomendações para reverter esse cenário, além de um estudo prático que demonstra o distanciamento brasileiro cada vez maior em relação ao plano de ação mundial, com vistas a um planeta melhor, mais justo e igualitário. O caso analisado é o do desastre de Brumadinho, ocorrido em janeiro deste ano, acrescido do registrado em Mariana, em 2015 – ambos no estado de Minas Gerais.

Cidades e comunidades sustentáveis

Vitor Mihessen, coordenador de informação da Casa Fluminense – outra organização integrante do GTSC A2030 -, que também participou da elaboração do documento, com foco específico no ODS 11 (“Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”), entende como a grande mensagem do relatório o descompromisso do governo brasileiro com a Agenda 2030. Para o especialista, essa leitura está dividida em dois eixos fundamentais. O primeiro diz respeito à não implementação de práticas republicanas e democráticas, que versam sobre planejamento, participação e transparência.

“Especificamente sobre o ODS 11, há todo um desmantelamento no sentido do planejamento. A não entrega dos planos de mobilidade, a não modelagem para mitigação das mudanças climáticas, o Plano Nacional de Habitação que não vai ser revisto e o próprio fim do Ministério das Cidades, que retira o protagonismo do olhar para as cidades, são alguns exemplos.”

O segundo eixo se refere ao que o grupo entende como implementação de “necropolíticas ou políticas de morte”.

“Em relação ao governo do Rio de Janeiro, de forma geral, entram como exemplos a flexibilização do uso de armas e das forças policiais, a fome, o uso de agrotóxicos, a criminalização do aborto. Olhando especificamente para o ODS 11, temos a flexibilização das questões relacionadas ao trânsito, sobretudo no transporte individual, com a liberação da obrigatoriedade do uso da cadeirinha para crianças, o aumento da pontuação limite na CNH [Carteira Nacional de Habilitação] e o desligamento de radares. São políticas que promovem uma série de mortes relacionadas a esse tema”, explica Vitor.

Diminuição da transparência e dos espaços de diálogo

A análise ganha ainda mais importância este ano, visto que o Brasil foi um dos 47 países a se comprometer com a apresentação voluntária de suas políticas nos setores social e ambiental durante o High-level Political Forum (HLPF) 2019, realizado em julho, em Nova York. No entanto, o governo federal desistiu de apresentar sua revisão nacional. Sendo o HLPF a mais alta instância das Nações Unidas para o monitoramento da Agenda 2030, o Relatório Luz 2019 se torna a principal fonte de avaliação sobre os avanços e desafios do país frente à agenda global de desenvolvimento sustentável no último ano.

Para Alessandra, a postura do governo brasileiro é grave e não se justifica em base técnica. “Tanto o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], quanto o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] já estavam avançados na elaboração dos dados. Então, avaliamos a desistência como uma decisão política. Vale destacar que o país batalhou muito pelo espaço do Brasil na lista dos países que apresentariam sua revisão nacional. Com isso, perdemos uma oportunidade importante de posicionar esta como uma agenda relevante.”

A coordenadora da GESTOS menciona ainda a gravidade da extinção da Comissão dos ODS com o “Revogaço” – como é chamada a medida que extinguiu, no início deste ano, os conselhos e colegiados subordinados à administração pública federal direta, autárquica e fundacional e com participação da sociedade civil. “O Brasil teve um papel de liderança no processo de formulação da Agenda 2030. Então, para nós, esse é mais um retrocesso grandioso.”

Recomendações

O novo relatório traz mais de 150 recomendações para reverter esse cenário.

Yumna Ghani, da Artigo 19 – organização que também integra o GTSC A2030 -, ressalta que parte delas se repetem em relação à edição anterior do relatório por não terem sido acatadas e implementadas.

Para ela, a reversão do “Revogaço”, uma mudança na política fiscal com o retorno de investimentos em áreas prioritárias como saúde, educação, além da retomada de políticas de proteção ambiental, desde a demarcação de terras indígenas até o investimento em organizações que fiscalizam desmatamento e outros crimes ambientais estão entre os destaques.

Alessandra acrescenta à lista a retomada da antiga política de relações exteriores do Brasil. “Nós vemos como muito problemática as mudanças que aconteceram nos últimos meses em termos de como o país estabelece parcerias e as pautas prioritárias de sua política internacional.”

Outra recomendação relevante para a especialista se refere à retomada da valorização e dos investimentos na produção de dados nacionais.

“Estamos presenciando um ataque a essas instituições que, durante todos esses anos, foram responsáveis pela produção dos dados de que precisamos para informar as políticas públicas. Sem instituições fortes, não temos condições de implementar políticas que dialoguem com a realidade. Esperamos que esse conjunto de recomendações, que traduz a necessidade de reversão de muitos dos caminhos que estão sendo adotados pelo governo federal, seja adotado com a máxima urgência, sob o risco de o Brasil entrar em um processo de insustentabilidade que dificilmente se reverterá.”

Acesse a edição 2019 do Relatório Luz em português e inglês.


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