“A crise atual abre a possibilidade de uma profunda correção do que a democracia se tornou”, acredita Eduardo Giannetti

Por: GIFE| Notícias| 12/03/2018

 

O Brasil vive um desafio: após 30 anos de vivência democrática – com avanços acumulados nos planos social, ambiental e econômico -, o país depara-se com limites e desafios em todas as dimensões e a escassez de agendas comuns para responder a eles. Que Brasil queremos? Que possibilidades de ação temos para avançar na trilha da democracia?

São questionamentos e reflexões como estas que a mesa de abertura do X Congresso GIFE, de 4 a 6 de abril, pretende provocar e trazer à tona para inspirar as discussões ao longo dos três dias de evento. À frente dos debates estarão profissionais e especialistas em vários campos, como Eduardo Giannetti, considerado um dos mais respeitados economistas do Brasil.

Formado em Economia e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (SP) e com Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, lecionou nas duas instituições. É autor de 11 livros de ficção e de não ficção, sendo o mais recente o ‘Trópicos utópicos’, que examina os dilemas brasileiros a partir da crise civilizatória que acomete o mundo.

Confira a entrevista exclusiva realizada pelo redeGIFE com o especialista sobre a temática:

O tema do Congresso é “Brasil, democracia e desenvolvimento sustentável” e tem como pano de fundo o ano de 2018 em que temos o marco de 30 anos da nossa Constituição. O que é possível apontar como avanços nestas décadas e quais as mazelas que o país ainda precisa encarar de frente?

Nestes 30 anos, temos alguns marcos, como a redemocratização em meados da década de 80, a conquista da estabilidade monetária com o plano real em meados da década de 90 e, agora, nas primeiras décadas do século XXI, coloco na mesma ordem de importância da vida brasileira as revelações trazidas pela Operação Lava Jato, uma investigação que escancarou a deformação patrimonialista do Estado brasileiro, dado no qual os governantes valem do poder para se perpetuar nele e largos segmentos do setor privado buscam atalhos de enriquecimento por meio do acesso privilegiado aos governantes. Essa revelação nos dá uma possibilidade de correção profunda de algo que acompanha a vida brasileira desde a sua origem, que é essa promiscuidade entre o público e o privado na vida pública.

Ao falar de sustentabilidade e democracia, num contexto de política, temos uma chance, como nunca se ofereceu, de buscar uma correção profunda dessa deformação para que a democracia deixe de ser um lamentável mal entendido e que nossa economia de mercado não continue a ser uma caricatura de economia de mercado, em que boa parte do setor privado está muito mais voltada para obter crescimento por meio de atalhos junto às autoridades, do que realmente oferecendo bens e serviços por um valor que a sociedade reconhece, que resultam da inovação e da eficiência.

É espantoso que duas empresas privadas tenham colocado o Estado brasileiro na sua folha de pagamento e foi isso o que descobrimos na Lava Jato. Eu tenho me inspirado muito num verso do escritor Fernando Pessoa, que me enche de esperança: ‘Nos extraviamos a tal ponto que devemos estar no bom caminho’.

Estamos diante de uma crise econômica, política e social…Qual o perigo para a democracia e a possibilidade de avanços para esse novo olhar para tal?

Nós estamos passando por uma crise, que é mais do que uma crise política, mas abre a possibilidade de uma profunda correção do que a democracia se tornou no Brasil, em que os governantes agem como se a sociedade existisse para servi-los e não o contrário. Isso é uma realidade desde sempre, desde a sua origem. A sociedade brasileira foi inventada pela coroa portuguesa para servi-la. Ao longo de cinco séculos, nós não conseguimos inverter isso. Só que a coroa não está mais em Lisboa, mas em Brasília. Por isso eu defendo como bandeira ‘menos Brasília e mais Brasil’, o que significa na prática completar o movimento federativo esboçado na Constituição de 88, mas não completado.

Defendo que a democracia no Brasil será fortalecida e o uso do recurso público será muito mais criterioso na medida em que tivermos o reforço do poder local, das cidades. Não estou defendendo que o dinheiro público, arrecadado pelos impostos, não tem que ir à Brasília e voltar. A regra de ouro no estado federativo como foi imaginado em 88, é que o dinheiro público deve ser gasto o mais perto possível de onde é arrecado. Nesse modelo, só vai para Brasília o dinheiro público que fazia as atividades típicas de governo central, como a segurança externa, diplomacia, banco central, órgãos reguladores etc., questões que só o governo central pode exercer, e também só passar por Brasília os recursos que são redistribuídos inter-regionalmente.  Como temos uma grande desigualdade regional no país, é razoável que os Estados mais prósperos transfiram recursos para os Estados menos favorecidos. Esse dinheiro também passa por Brasília. O que não é tarefa do governo central e nem redistribuição inter-regional, o dinheiro fica o mais perto possível de onde for arrecadado.

Isso vai dar um sentido fundamental que é criar cidadania tributária no Brasil. Na prática, isso significa que um cidadão precisa saber quanto da sua renda está pagando em impostos, para onde o recurso está indo, e de que maneira ele volta para o cidadão. Hoje não temos nenhuma cidadania tributária no Brasil. 90% dos municípios brasileiros vivem de mesada constitucional. Eles praticamente não arrecadam, todo o recurso que chega vem de fora. E o cidadão que mora no município não sabe de onde está vindo o dinheiro, em que quantidade e o que está sendo feito dele.

Se tem uma situação da qual temos que nos livrar é: o governo central decreta projetos mirabolantes, como o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, o Plano Nacional de Saneamento, o Plano Nacional de Educação, e nada acontece na ponta praticamente. Está tudo resolvido no papel, está tudo decretado, e não tem realidade porque os municípios não têm capacitação e recursos para fazer. Nós vamos melhorar muito a qualidade da gestão de recursos públicos no Brasil se tivermos coragem de promover uma descentralização. O cidadão vai poder usar mais as novas tecnologias para participar e vai se construir no país, que é fundamental para uma democracia, um conceito de cidadania tributária.

O cidadão mora no município, ele não mora no Estado e nem União. As questões relevantes para a vida do cidadão, que são educação, saúde, segurança e saneamento, todas estão em realidades estritamente locais. E é por isso que as decisões, o controle e a fiscalização têm que ser também locais. Esse é o sentido que dou a essa ideia, que é resumida na fórmula: “Menos Brasília e mais Brasil”.

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo segundo as pesquisas. A desigualdade econômica é latente ainda, mas estamos diante de outras desigualdades. Qual o impacto desse cenário para a democracia e o desenvolvimento sustentável? É possível estes dois ‘mundos’ caminharem juntos?

A desigualdade no Brasil tem muitas dimensões: social, econômica, de gênero, racial… e todas passam por uma profunda desigualdade de oportunidades. A condição da família que se nasce tem o poder quase que determinante em relação ao seu futuro, e isso é profundamente injusto. O sentido das políticas públicas e do investimento social deve ser na capacitação dos brasileiros de menor renda, jovens e crianças, para que eles constituam competências, habilidades e talentos para poder desenvolver o seu potencial.

Isso passa por saneamento, educação de qualidade, por saúde básica primária e por segurança. Só que estamos muito longe disso. É quase inacreditável que o Brasil chegou ao século XXI com quase metade dos domicílios sem coleta de esgoto. Isso num país no qual o Estado arrecada quase 34% da renda nacional. A carga tributária brasileira é quase 34% do PIB (Produto Interno Bruto), ou seja, de cada R$100 que os brasileiros criam do seu trabalho, 34 são arrecadados pelo Estado em impostos. Além disso, o Estado brasileiro tem um déficit nominal de 8% do PIB. Então somando a carga tributária, mais o déficit, que é o que o Estado gasta além do que arrecadou, chegamos a um resultado de que 43% de todo o valor criado pelo trabalho da sociedade é intermediado pelo setor público.

E a sociedade não vê as contrapartidas. Tem algo muito errado nas finanças públicas brasileiras. O nosso ensino é de péssima qualidade, a saúde é precária e o saneamento básico é vergonhoso.

Diante disso, é possível dizer qual Brasil queremos? Há um projeto de nação que precisa ser construído?

Há um projeto de nação a ser construído e uma eleição presidencial é o momento adequado para fazer esse debate. Temos que entender o que está acontecendo num país em que mais de 40% da renda nacional é intermediada pelo Estado e ele não atende as demandas mais elementares dos cidadãos.

E temos que entender como foi possível que a relação entre o setor privado e público tenha ficado tão promíscua e tão corrupta como a Operação Lava Jato mostrou. Essa deveria ser uma questão não partidarizada. Essa relação promíscua que acompanha o país desde a sua origem, em alguns momentos mais exacerbados e outros menos, é uma deformação de nascença do Brasil. E temos, graças às revelações da Lava Jato, uma oportunidade para enfrentá-la.

Eu costumo dizer que se isso existe é melhor saber do que não saber. O diagnóstico está aí. Tivemos uma aula aplicada de sociologia política como vários especialistas nunca imaginariam. Mas tudo o que eles apontaram na formação e deformação patrimonialista brasileira a Lava Jato revelou em detalhes.

Você acha que estas questões serão viáveis de serem discutidas no momento das eleições?

Isso vai depender do nosso engajamento e disposição de aproveitar o momento para enfrentar os nossos problemas. Acredito que depois de tudo o que se revelou no país, a população brasileira está profundamente insatisfeita. Mas não podemos permitir que o descontentamento gere indiferença, de uma postura cínica em relação à política  A resposta a tudo isso é participação e não é omissão. Eu entendo que haverá uma resposta em grande escala positiva a tudo o que nós descobrimos sobre nós mesmos. O Brasil está passando por um sofrido processo de autoconhecimento porque muito do que apareceu já existia, mas não sabíamos. Por mais doloroso que seja se defrontar com tudo isso, é saudável, com promessas de avanços.

E o papel dos investidores sociais? Quais são as agendas e novas convergências que o ISP pode e deve se envolver e participar para colaborar com o fortalecimento da democracia?

O primeiro desafio, de caráter formal, é identificar os pontos nos quais o investimento social tem poder multiplicador. As possibilidades de fazer muito com pouco e não ter a pretensão de substituir o público, porque não é exequível. Eu vejo como prioridade duas áreas que vão ser fundamentais para o futuro do Brasil: o Ensino Fundamental e a preservação ambiental. Acho que aí estão os grandes desafios estratégicos de fato e nos quais o ISP bem desenhado pode ter impacto e um efeito multiplicador de maior relevância.

O grande desafio é encontrar as oportunidades do investimento de modo que ele seja multiplicado e tenha impacto relevante socialmente. Eu acho que capacitar crianças e jovens, esse alto potencial, é um caminho. Ajudar na formação de professores qualificados que tenham impacto relevante no processo educacional é fundamental também.

Em meio ambiente, é preciso escolher muito bem as áreas críticas e sensíveis em que o setor privado pode dar uma contribuição relevante. Eventualmente até em pesquisas, que depois são colocados como um bem para utilização nas políticas públicas.

Precisamos entender, por exemplo, melhor o serviço ambiental prestado pela floresta amazônica e medir de fato a contribuição que a floresta dá para todos os ecossistemas do país e do continente. Isso é algo fundamental. Seria bom ter uma evidência robusta, estamos caminhando para isso, de que o agronegócio do Centro-Oeste depende da floresta amazônica integra, e que as duas coisas estão interdependentes. Ou seja, o uso impróprio do território amazônico vai comprometer todo o potencial fantástico que o Brasil tem no agronegócio do Centro-Oeste, e isso precisa ser melhor pesquisado e entendido. É uma questão realmente estratégica para o Brasil.

E olhando para o além do agora? Que prioridades e visões de futuro possíveis merecem guiar-nos nos esforços para construirmos o país desejado?

Eu tenho desenvolvido no meu trabalho uma ideia de que o Brasil não pode se imaginar como um defeito diante do mundo ocidental, como se nós fossemos uma cópia empobrecida ou desastrada dos chamados países ricos. Não somos isso. Somos uma opção cultural, com seus méritos e defeitos, e precisamos de coragem para valermos dos nossos valores e construir uma identidade que é nossa, daquilo que consideramos um ideal de sociedade.

Eu defendo muito que tenhamos ousadia para construirmos uma utopia brasileira na qual as culturas afro-ameríndias tem um papel de maior relevância, diante do modo como elas se integraram ao nosso modo de ser e a nossa vida cotidiana.

E como fazer isso?

Nós precisamos resolver os problemas elementares, de vida prática, que são relacionados à educação, saúde, segurança, e a partir disso, ter a tranquilidade de buscar firmar os valores da convivência, da efetividade, e não submeter tudo a um critério utilitarista, economicista, que é o modelo que nos foi oferecido e que faliu.

E a participação das pessoas nesta empreitada? Como deve ser?

Isso é algo que todos nós cidadãos, nas nossas vidas, precisamos construir no dia a dia. Seria totalmente equivocado imaginar que uma cultura pode ser criada a partir de um direcionamento. Agora, nós precisamos de condições para nos entendermos naquilo que somos. Ou seja, um país onde as culturas não ocidentais, principalmente a africana e a ameríndia, se integraram de uma forma diferente e original. Isso se releva na música, na literatura, na culinária e em todas as expressões da nossa cultura e no dia a dia, na vitalidade das afeições, numa certa disposição amigável e lúdica diante da vida. É um traço definidor da cultura brasileira a visão da vida como algo a ser celebrado.

A questão é saber se nos reconhecemos nessa disposição alegre e desejosa de vida ou se queremos sacrificar tudo em nome da acumulação da riqueza e uma corrida armamentista do consumo, que se mostrou altamente nociva ao equilíbrio ambiental do planeta.

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