“Cultura de Doação” é o segundo episódio da websérie “Sustenta OSC”

Por: GIFE| Notícias| 13/08/2018

 

“O que eu sinto falta na sociedade brasileira é a doação como um valor. Se acontecer uma desgraça ambiental, eu me sinto abalada, solidária, eu vou doar, mas a gente não consegue romper o âmbito pessoal da solidariedade. Eu sempre me pergunto: ‘por que a gente não consegue romper isso, por que as pessoas que têm grandes fortunas doam pouco comparativamente?”

A reflexão acima é feita por Neca Setubal, presidente do conselho de governança do GIFE, na abertura do segundo episódio da websérie “Sustenta OSC”, que foi ao ar nesta segunda-feira (13/08). Intitulado “Cultura de Doação”, o vídeo aborda o cenário brasileiro de doações com finalidade de interesse público. O objetivo da websérie é retratar os principais desafios para o fortalecimento da sustentabilidade econômica das Organizações da Sociedade Civil (OSCs).

A “Pesquisa Doação Brasil”, realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), identificou que os brasileiros são motivados a doar por um sentimento de solidariedade, ou seja, veem a doação como uma forma de contribuir com o próximo. Ao contrário do que ocorre em outros países, em que as pessoas acreditam em determinadas causas ou transformações que querem produzir na sociedade e enxergam a doação como instrumento de cidadania.

O Brasil aparece em 75º lugar no ranking do “CAF World Giving Index, estudo global promovido anualmente pela Charities Aid Foundation (CAF) que mede o nível de solidariedade das nações. A última edição, lançada em 2017, baseou-se em dados de 139 países e 146 mil pessoas. Na comparação com a pesquisa anterior, o país caiu de 30% para 21% na doação a organizações.

O estudo apontou alguns desafios para a mudança de cultura em relação à doação no Brasil: 1) Não se entende a função das organizações da sociedade civil no país; 2) Os brasileiros não enxergam o papel transformador das doações; 3) Os brasileiros não confiam nas OSC; e 4) Os brasileiros acham que quem doa não deve divulgar que doou.

Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, defende a necessidade de “atualizar, na complexidade da rede contemporânea, uma visão de doação em que cada ator individualmente ou institucionalmente reconheça que a sua contribuição para o espaço público, que não é mais só governamental, é estratégica”.

Para Marcos Kisil, fundador e conselheiro do IDIS, é preciso uma postura mais comprometida com a finalidade do que com a doação em si. “O doador tem que sentir felicidade à medida que ele resolve o problema e não à medida que ele faz a caridade. Eu saio do papel passivo para o papel ativo do doador que quer ver o resultado e o impacto do que ele causou.”

Cultura de Doação: cenário brasileiro x cenário mundial

Segundo dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), 52% das organizações da sociedade civil têm nas doações voluntárias uma de suas fontes de recursos. Para 24% delas, essa é a principal.

A “Pesquisa Doação Brasil” mostra que 77% dos brasileiros doou tempo, bens ou dinheiro em 2015 e que é de R$ 13,7 bilhões o valor estimado de doações de pessoas físicas no mesmo ano, o que equivale a 0,23% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Essa proporção é três vezes maior no Reino Unido e sete vezes maior nos Estados Unidos.

Dados da publicação “Tudo que você precisa saber antes de escrever sobre ONGs”, do Observatório da Sociedade Civil, canal de comunicação da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), revelam que países mais desenvolvidos possuem uma proporção maior de OSCs em relação à população se comparados ao Brasil: Brasil – 691 pessoas/OSC; Reino Unido – 388 pessoas/OSC; EUA – 212 pessoas/OSC.

“Todos os países desenvolvidos têm uma sociedade civil super ativa que cobra, que vai atrás de transparência, que doa, que doa seu tempo e que está preocupada com a comunidade. Faz parte da evolução como país e como cidadania a gente se engajar de diversas formas”, defende Marcella Coelho, presidente do conselho diretor do Greenpeace.

Cultura de Doação no Investimento Social Privado

O investimento social privado nacional caiu 16% em 2015 em comparação com o ano anterior, segundo o “Censo GIFE 2016”. O estudo identificou que desse total, 60% foi em programas e ações próprias e apenas 21% em doações e patrocínios de iniciativas de terceiros, o que equivale a R$ 595 milhões, 33% menos que em 2014.

Por outro lado, 78% dos investidores sociais disseram que pretendem manter ou aumentar os níveis de apoio às OSCs, além de haver aumentado também, de 21% para 35%, o número de instituições privadas que apoiam organizações da sociedade civil pelo entendimento de que é parte da finalidade do investimento social privado contribuir para o fortalecimento e sustentabilidade deste campo.“O dado de 2016, de R$ 2,9 bilhões, é o menor da série desde 2009. São números muito inferiores aos que eram praticados há quase uma década”, lamenta Eduardo Pannunzio, pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito São Paulo).

Para o pesquisador, o elemento cultural é um dos entraves para a sustentabilidade financeira das organizações da sociedade civil no Brasil e tem a ver com a narrativa acerca da importância de seu papel na vida do país, que ainda não foi adequadamente incorporada entre os brasileiros. “A sociedade, muitas vezes, não reconhece e não prestigia esse papel e, portanto, ainda se sente pouco responsável com relação à sobrevivência e ao desenvolvimento dessas organizações, inclusive com doação de recursos financeiros.”

Doação estratégica

Eduardo afirma que três quartos da população declara que faz doações com algum tipo de regularidade, mas na maioria das vezes, essa doação não é institucionalizada e, sobretudo, não é estratégica, ou seja, não está necessariamente vinculada aos problemas da comunidade em que está inserido o doador. “Talvez esse recurso possa ser melhor otimizado à medida que a gente crie uma cultura de doação mais estratégica entre nós”, defende.

Henrique Silveira, coordenador executivo da Casa Fluminense, também destaca a importância da estratégia no financiamento da atuação da sociedade civil organizada. “O quanto a gente pode ter financiamentos que de fato fortaleçam as OSCs e seus propósitos para que elas tenham a flexibilidade de se adaptar ao contexto e à conjuntura do momento no lugar de financiamentos ou maneiras de funcionar de algumas organizações que estão muito focadas em projetos e acabam perdendo a capacidade de se conectar com outras demandas da sociedade que estão o tempo todo pipocando.”

João Paulo Vergueiro, diretor executivo da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), aponta como um dos obstáculos ao aumento do volume de doações a falta de estruturação de uma estratégia de captação de recursos por parte das OSCs. “O fato é que os brasileiros dão para quem pede e se você não pede, dificilmente você recebe a doação. Então, muito do que existe de falta de cultura de doação é porque temos uma falta de cultura de pedir a doação. As OSCs não contam de forma geral com áreas estruturadas de captação de recursos”, aponta.

Legislação

Outro ponto crucial quando a discussão é a sustentabilidade econômica da sociedade civil organizada é a legislação, que precisa atuar em favor da ampliação das doações de interesse público no país. Essa diretriz compõe um dos eixos de atuação do projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”. Por meio de uma consulta pública realizada no final de 2017 no âmbito do projeto, o campo identificou alguns desafios a serem superados nesse tema: complexidade da legislação atual, que dificulta e desestimula a doação; falta de transparência e capacidade de comunicação das OSCs para demonstrar o impacto de suas ações; falta de incentivos fiscais para diversos temas relevantes e doação de pessoas físicas; pagamento de imposto que incide nas doações, como o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação); entre outros.

Neste sentido, simplificar os procedimentos e criar novas modalidades incentivadas; atualizar a legislação brasileira facilitando as doações de pessoas físicas e jurídicas; simplificar a contabilidade exigida para as organizações de pequeno porte, como ocorre com as micro e pequenas empresas; diminuir as tributações sobre doações existentes; e criar mais mecanismos de doação para OSCs que não estejam vinculadas a projetos são alguns caminhos apontados pelos respondentes da consulta para superar esses desafios.

João Paulo, da ABCR, defende um único ordenamento para incentivar a cultura de doação no país. “O que a gente tem hoje são várias leis complicadas, burocráticas, elas não são claras para quem vai doar. Então, as pessoas deixam de doar várias vezes mesmo tendo a possibilidade de fazer a doação. A gente precisa colocar tudo isso num bolo, converter tudo numa única legislação que vai incentivar a cultura de doação.”

8º Encontro do Grupo de Discussão do Projeto Sustentabilidade Econômica das OSCs

O primeiro episódio da websérie “Sustenta OSC”, lançada no dia 6 de agosto, foi exibido durante o “8º Encontro do Grupo de Discussão do Projeto Sustentabilidade Econômica das  OSCs”. Realizada na última terça-feira (07/08), a atividade reuniu cerca de 30 representantes de instituições associadas e não associadas ao GIFE e teve como pauta a construção de uma ação conjunta a partir do lançamento da websérie.

Na ocasião, a coordenadora da área de advocacy do GIFE, Aline Viotto, explicou que a websérie avança no debate sobre o setor. “Primeiro, nós estávamos discutindo a importância da sociedade civil organizada. A websérie dá um passo adiante que é falar sobre como ela se financia e como a legislação pode operar para criar mecanismos que incentivem e facilitem que os recursos da sociedade cheguem para as organizações.”

Para a coordenadora, a iniciativa possibilita pautar o tema de forma mais ampla. “Esse é um assunto complexo e difícil que envolve temas como tributação, incentivos fiscais, fundos patrimoniais, que são sempre assuntos áridos para tratar com o conjunto da sociedade. A websérie vai nos permitir traduzir esses temas complexos para um público mais amplo e também é uma forma de contribuir com o debate pré-eleitoral sobre as agendas do Brasil para o futuro”, observou.

Numa dinâmica em grupos, os presentes puderam refletir coletivamente sobre ferramentas e caminhos para uma ação do grupo em face da websérie no período pré-eleitoral. As discussões pautaram elementos como a necessidade de uma ferramenta que ajude a alinhar a narrativa entre as instituições, como uma carta pública, por exemplo; bem como conteúdo e abordagem, se mais ampla ou mais focada em agendas específicas como Fundos Patrimoniais Filantrópicos, Incentivos Fiscais e Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).

A preocupação com uma linguagem acessível que promova maior informação sobre o universo das organizações da sociedade civil e seu papel junto à população também apareceu no debate, que pontuou alguns caminhos para a ação: produção de carta com agenda mínima, diálogo com coordenadores das campanhas eleitorais e trabalho junto à imprensa, bem como mobilização nas redes sociais e articulação junto às diversas redes representadas pelo grupo.

Para José Marcelo Zacchi, secretário-geral do GIFE, é fundamental que o debate eleitoral tenha no seu bojo o reconhecimento e a valorização da cidadania e da sociedade civil. “O debate eleitoral é central. Precisamos recuperar nossa vida política construindo as agendas necessárias. É preciso que haja reflexão e engajamento na própria sociedade para que a gente possa estar juntos no impulsionar de novas agendas e é preciso que o poder público também se renove e revigore para trabalhar ao lado da sociedade. Tem um lado que é a sociedade fazer a sua parte e nesse sentido temos as OSCs se mobilizando e buscando formas de aprofundar a atuação cidadã e coletiva porque só assim avançaremos enquanto país. De outro lado, precisamos desfazer o abismo que se colocou entre poder público e sociedade, atualizar e revigorar os mecanismos de participação, transparência e controle.”

“Segundo dados do Mapa das OSCs, há quase que uma implosão dos modelos de parceria e trabalho em conjunto com as organizações. Isso de um lado responde a crise fiscal, mas uma queda dessa proporção é uma decisão política ‘temerária’ e precisamos criar condições para que a sociedade faça sua parte de maneira mais aprofundada e aí entram todas as nossas agendas: doação, fundos, incentivos, etc.”, complementa.

Iniciativas pela cultura de doação

Para aproximar esse tema da sociedade e convocar mais pessoas a também se mobilizarem pela ampliação da cultura de doação no país, algumas iniciativas vêm sendo realizadas por organizações e movimentos. Uma delas é o Dia de Doar. A ação, que começou nos Estados Unidos em 2012, foi realizada no Brasil pela primeira vez em 2013 e hoje é uma campanha mundial com mais de 35 países participantes.

Nos outros países, a iniciativa tem o nome de Giving Tuesday (Terça-feira da Doação, em português). No Brasil, o Dia de Doar é organizado pelo Movimento por uma Cultura de Doação, uma coalizão de organizações e indivíduos com a finalidade de promover a cultura de doação no país.

O movimento tem estimulado a participação de pessoas, organizações e empresas, que têm criado suas próprias campanhas de captação de recursos sob o mote da ação. Já para os investidores, é uma oportunidade para reforçar suas parcerias com as OSCs e ajudar a alavancar a sustentabilidade econômica do campo.

Várias cidades já se mobilizaram para que a data seja oficial. É o caso de Sorocaba (SP), Limeira (SP), Caicó (RN), São Paulo (SP) e Curitiba (PR). Já o estado de São Paulo é o primeiro a ter um projeto de lei apresentado na Assembleia Legislativa (PL 790/2017) prevendo a promoção oficial do Dia de Doar.

João Paulo, da ABCR, membro do movimento, aponta que o Dia de Doar tem se tornado um disparador para que as pessoas doem não apenas nessa data, mas torne a doação parte do seu dia a dia ao longo de todo o ano. “Precisamos que essa ação de doar para as organizações da sociedade civil se torne um hábito. É um grande movimento para desenvolver uma doação rotineira.”

Outra iniciativa relevante dentro do espectro de ações para incentivar a cultura de doação no Brasil é o Movimento Arredondar, que atua a partir do arredondamento de centavos em compras no varejo nos estabelecimentos cadastrados, físicos ou, mais recentemente, virtuais. Todo valor arrecadado vai para setenta organizações selecionadas que trabalham pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da ONU.

“O bacana das microdoações é possibilitar que muitas pessoas doem de uma forma simples e transparente, dentro do hábito delas, sem que isso seja uma transação onerosa, que exija demais de cada um”, observa Nina Valentini, diretora-presidente do Arredondar.

A crença de que qualquer contribuição é válida é respaldada pelos números do movimento. Mais de sete milhões de doadores já arredondaram o valor de suas compras, contribuindo com mais de dois milhões de reais. “Eu gosto de falar que o modelo do Arredondar, das microdoações, pode ser uma porta de entrada para vários tipos de engajamento. Nós recebemos muitas histórias de clientes que viraram doadores mais recorrentes ou voluntários de alguma organização que apoiamos porque arredondar no final da compra foi um primeiro contato com a doação. O nosso trabalho desde 2011 é usar a força do varejo para a mobilização de milhões de pessoas que compram todos os dias para causas sociais.”

 

Projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”

A websérie “Sustenta OSC” faz parte do projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”, uma realização do GIFE e da Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito São Paulo) em parceria com o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea) e apoio de Fundação Lemann, Instituto Arapyaú, Instituto C&A e União Europeia.

Por meio de produção de conhecimento, comunicação, articulação e incidência para alterações normativas e regulatórias que ampliem as condições para a sustentabilidade política e econômica das OSCs, o projeto visa construir um ambiente legal, jurídico e institucional saudável para a atuação das organizações da sociedade civil.

A atuação da iniciativa se dá sobre quatro eixos temáticos: Doação, Fundos Patrimoniais, Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).

Dentre as atividades realizadas ao longo de 2017, quando a ação teve seu fluxo de trabalho consolidado, estão a abertura de espaços de escuta ativa sobre os temas por meio da criação de um grupo de discussão, de uma consulta pública e de reuniões do “OSC em Pauta”, espaço de debates promovido pela FGV Direito SP. Além disso, um cuidadoso acompanhamento da movimentação legislativa foi efetuado ao longo do ano, cujas proposições podem ser conhecidas no site do projeto.

A disseminação de conteúdos relacionados aos temas, seja por meio do boletim quinzenal dedicado ao projeto, do site ou dos eventos mencionados, é um dos pilares importantes do trabalho. Essas ações, juntamente com pesquisas que estão sendo realizadas pela FGV Direito SP, são fundamentais para embasar e dar consistência às ações de incidência que devem marcar o projeto ao longo dos próximos anos.

Próximos episódios

Ao longo de oito episódios, que serão lançados semanalmente, a websérie vai retratar os principais desafios para o fortalecimento da sustentabilidade econômica das OSCs, dando luz aos caminhos para superação dos mesmos. Os vídeos abordam os seguintes temas: Importância de doar, Cultura de doação, Confiança, ITCMD, Incentivos fiscais, Fundos patrimoniais, Futuro e Organizações da Sociedade Civil.

Os próximos episódios da websérie “Sustenta OSC” serão lançados toda segunda-feira no canal do GIFE no Youtube. Acompanhe!


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