Filantropia Negra: o amor como caminho de ação para a justiça social

Inspirado nas obras da escritora e ativista bell hooks, o Mês da Filantropia Negra de 2023 teve como tema “Love in action”. Atores da filantropia e do investimento social privado falam sobre a prática ancestral da filantropia negra. Em infográfico, trazemos um pouco da história de bell hooks e sua produção sobre o amor como ferramenta para transformação social. 

Em 1999, a intelectual e ativista bell hooks sistematizou o amor enquanto ética de vida em três livros: uma “trilogia do amor”. Um chamado a compreender o amor além do sentimento e adotá-lo como ação.

A tradutora dos livros no Brasil, Stephanie Borges, explica que o pensamento da autora é atravessado pela importância do amor na vida das pessoas negras. Não o amor romântico, mas o que está disperso nas relações em comunidade e construção de redes de apoio. “No livro, ela ensina que o amor é que se faz”, pontua. 

A edição de 2023 do Mês da Filantropia Negra se inspirou nas obras da escritora para escolher como tema “Amor em ação: Cultivando o amor como ferramenta de liberdade e ação social”. 

Pela primeira vez em 22 anos, a agenda teve início fora dos Estados Unidos. “Tem mais pessoas negras no Brasil do que em qualquer lugar do mundo fora da África. Então não tem igualdade ou justiça para pessoas negras se o Brasil não estiver acertando essa questão”, ressalta a cientista social e criadora do Black Philanthropy Month, Dra. Jackie “Bouvier” Copeland.

Com mais de 30 anos de atuação no campo, Dra. Jackie se recorda quando seus colegas afirmavam convictos que pessoas negras não tinham filantropia, enquanto toda trajetória da comunidade em que cresceu dizia o contrário. 

No Brasil não é diferente. A primeira experiência de previdência privada do país nasceu da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), primeira associação civil negra brasileira, que distribuía os recursos alcançados durante o ano para comprar cartas de alforrias. 

Ligia Margarida de Jesus, primeira mulher a presidir a SPD, aponta que a população negra desde a sua chegada ao Brasil já praticava atos de solidariedade entre si, e que ainda continua a se organizar através de estratégias inovadoras aliadas a saberes tradicionais. “Hoje, ainda falta muito para a sociedade compreender e valorizar a importância de todo esse processo que se iniciou nos porões dos navios e nunca cessou.” 

Para a Dra. Jackie Copeland, os principais desafios da conjuntura brasileira incluem continuar a identificar e desfazer movimentos racistas; financiar pesquisas que documentem ações tradicionais da filantropia negra; compreender quilombos e associações religiosas enquanto organizações filantrópicas; adotar estratégias de financiamento mais participativas. 

Um consenso entre atores atores da filantropia negra que hoje acessam a filantropia hegemônica é que para mudar esse quadro é é preciso desburocratizar e descentralizar os recursos – inclusive regionalmente – e investir a longo prazo

A luta pelo acesso a recursos e democratização do investimento social privado

“Não existe projeto de resultado imediato que seja sustentável. Nós vamos gerar belas fotos, ilustrar bem nossos relatórios e continuar a manter as coisas do jeito que estão”, declara Giovanni Harvey, Diretor Executivo do Fundo Baobá

O co-fundador da Vale do Dendê, Paulo Rogério Nunes, lamenta a sub-representação negra nos espaços de decisão do setor. “As pessoas amam a cultura negra, mas não amam as pessoas negras”, afirma. Para ele, o capital filantrópico precisa parar de apoiar apenas projetos e investir nas instituições, para que se tornem perenes. “A SPD tem 191 anos. Qual a próxima organização brasileira que vai conseguir?”

O Fundo Agbara, por exemplo, ainda não completou três anos, e a sustentabilidade para os próximos já é uma preocupação. Primeiro fundo brasileiro voltado exclusivamente para mulheres negras, uma das linhas de atuação do fundo hoje é o advocacy pela democratização do investimento social privado (ISP). 

“No Agbara temos muita competência, mas muita sorte também. Porque é inacreditável o número de organizações tão competentes quanto a nossa que não estão tendo chance. Principalmente as que estão fora do sudeste”, critica Aline Odara, idealizadora e diretora-executiva do Fundo. 

A pesquisa “Periferias e Filantropia: as barreiras de acesso a recursos no Brasil”, realizada pela Iniciativa Pipa, mostra que 31% das organizações de periferia vivem com menos de R$ 5 mil por ano; em 89% delas, as equipes gestoras têm mais de um emprego; em 58%, toda a equipe é voluntária. Além disso, 74% dos integrantes são pessoas negras, 68% mulheres, e 78% dos beneficiados também são pessoas negras. 

“Essas mulheres têm tido jornadas triplas. Mas e o ISP? Tem chegado até elas? É preciso garantir que elas trabalhem com dignidade. Que amor é esse que destinamos a essas mulheres para legitimar essa condição de existência humana?”, questiona Luana Batista, coordenadora de pesquisa na Pipa.

Para ela, pesquisas são essenciais para olhar a realidade e propor transformações. “O modo como a filantropia está dada hoje, reforça as estruturas de desigualdade social. A periferia não tem medo de prestar conta, falta dinheiro para fazer isso.”

Stephanie Borges observa que diante desta realidade adversa, as pessoas negras passam a tentar transformar a realidade ao seu redor.

 “Às vezes não começamos a nos envolver com filantropia pelo amor, mas por uma angústia. A partir do que se pode fazer para tentar melhorar as condições das pessoas negras no seu entorno.”

STEPHANIE BORGES, escritora e tradutora

Aline Odara pondera que é necessário solucionar a questão da continuidade das organizações e fundos de filantropia negra. “Tem uma equação que não se resolve no campo. Organizações que sabem que não vão resolver 400 anos de políticas excludentes em pouco tempo, mas com o desejo de existir a longo prazo; e instituições mantenedoras que querem investir em organizações que se garantam a longo prazo, mas não querem investir a longo prazo.”

Diante deste cenário, Aline compartilha duas iniciativas recentes do Fundo Agbara: o Programa Malunga: Fortalecendo Coletivas Negras, visando o fortalecimento institucional; e a criação de um núcleo de pesquisa e memória para sistematizar dados sobre filantropia negra no Brasil, o que quase não existe.

Ainda assim, a filantropa chama atenção para a importância de celebrar a luta ancestral que permitiu a continuidade dessa resistência. “Estamos aqui graças à luta do movimento negro, que é educador. Nos momentos desafiadores, precisamos lembrar que somos o sonho das nossas ancestrais”, finaliza Aline Odara.

O Mês da Filantropia Negra 2023

A palestra e painel de debate “Amor em ação: o poder da filantropia negra para justiça social” foi realizada no dia 03 de agosto de 2023 e contou com conferência inicial sobre o tema da cientista social e criadora do Black Philanthropy Month, Dra. Jackie “Bouvier” Copeland. No painel de debate, mediado por Jefferson Barbosa (Perifa Connection) estiveram presentes: Aline Odara (Fundo Agbara), Giovanni Harvey (Fundo Baobá), Ligia Margarida de Jesus (Sociedade Protetora dos Desvalidos), Paulo Rogério (Vale do Dendê), Luana Batista (Pipa). Com exceção de Stephanie Borges, as falas utilizadas neste texto são referentes ao evento. 

Ainda como parte das atividades do Mês da Filantropia Negra, no dia 04 de agosto, lideranças do ISP estiveram reunidas com  Jackie “Bouvier” Copeland; e no dia 17, o Café com Soluções – iniciativa exclusiva para associados GIFE, contou com a participação da Fundação Tide Setubal que compartilhou a experiência do seu Comitê de Diversidade e Inclusão, que deu origem à Política de Diversidade e Inclusão e o Canal de Acolhimento da organização.

Expediente

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ANALISTA DE COMUNICAÇÃO

Afirmativa
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DESIGN & DESENVOLVIMENTO


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