Filantropia comunitária: uma estratégia de atuação com os territórios, não para eles
Por: GIFE| Notícias| 19/11/2018Concebida como uma estratégia de investimento social voltada a impulsionar o desenvolvimento territorial e comunitário de forma sustentável a partir do envolvimento de diversos atores e lideranças locais, a filantropia comunitária vem crescendo de forma visível no cenário internacional.
No Brasil já existe um conjunto de iniciativas e experiências do tipo, porém sem o devido reconhecimento.
Pensando em promover esse reconhecimento e também a integração das iniciativas já existentes e dar passos na direção do fortalecimento dessa atuação, a Rede de Filantropia para a Justiça Social em parceria com a Global Fund for Community Foundations e o GIFE promoveram um encontro sobre o tema no dia 31/10, na sede da Fundação Tide Setubal.
O objetivo da ação foi oportunizar uma conversa sobre estratégias e experiências no campo da filantropia comunitária no Brasil e no cenário internacional. O evento contou com a presença de Jenny Hodgson, diretora executiva da Global Fund for Community Foundations, a quem coube uma exposição sobre o cenário da filantropia comunitária, seus conceitos, experiências e desafios no contexto internacional.
“O Brasil tem muitas organizações de base comunitária. Existem experiências impressionantes, inclusive vinculadas à Economia Solidária – que foi uma política pública muito bem sucedida que até deu origem à criação de uma secretaria -, com bancos comunitários, fundos rotativos e negócios de impacto. A ideia é poder trazer essa lente do reconhecimento”, afirma Graciela Hopstein, coordenadora executiva da Rede de Filantropia para a Justiça Social.
Erika Sanchez Saez, gerente de programas do GIFE, explica que o interesse da instituição em se somar à iniciativa se justifica por seu papel fomentador da diversificação do investimento social privado no Brasil. “Atualmente, temos em nossa base de associados empresas e fundações e institutos empresariais, familiares, comunitários e independentes. Defendemos um campo diverso em todos os sentidos, inclusive no que se refere aos tipos de investimento. Quanto mais diverso, mais complementar entre si será o setor.”
Filantropia comunitária: conceitos e contexto internacional
A filantropia comunitária é uma estratégia baseada no reconhecimento e na valorização do papel das comunidades locais, das suas lideranças e dos seus ativos na promoção de ações coletivas voltadas para alcançar o desenvolvimento sustentável de um determinado território e das suas populações, de acordo com as suas necessidades e potencialidades. Ela enfatiza a importância da mobilização de recursos, ativos e atores locais na promoção de dinâmicas de desenvolvimento de “baixo para cima”, fortalecendo as vozes e o poder das comunidades em busca de soluções próprias para os problemas existentes e da construção de um bem comum maior.
Na definição de Jenny Hodgson, “é uma forma de transferir poder para mais perto da base, para que as populações e atores locais tenham maior controle de seu próprio destino”.
Graciela ressalta que as comunidades efetivamente têm capacidade de se organizar e buscar soluções próprias para seus problemas, mas para alavancar tudo isso, muitas vezes é necessário algum tipo de intervenção externa, seja ela financeira ou estratégica. “Trazer essa discussão que o Global Fund for Community Foundations está promovendo sobre reconhecer que as comunidades têm poder, recurso, potenciais e capacidades é muito importante. Trata-se de uma forma de intervenção a partir de outro entendimento da realidade.”
Para Erika, um dos destaques da exposição de Jenny Hodgson se refere à defesa da filantropia comunitária como um modo de filantropia que pode ser empreendido por qualquer tipo de investidor.
“O que a Jenny traz é que mais do que um tipo de organização, a filantropia comunitária é um tipo de filantropia baseada na relação que se estabelece com a comunidade. É muito mais um modo de fazer com base nas origens e na governança dos recursos. A premissa é que a comunidade, do cidadão ao empresário, se torne responsável e participe do seu próprio desenvolvimento, tanto no aporte de recursos quanto na tomada de decisão.”
Apesar de reconhecer que a filantropia comunitária está atravessando uma onda de crescente expansão no âmbito internacional, com discussões renovadas e com novas formas de conectividade e de atuação criativa, trata-se ainda de um campo muito jovem, o que coloca como fundamental o apoio e suporte, principalmente das organizações e dos ecossistemas filantrópicos locais e internacionais, considerando que eles têm alcance e recursos para conectar organizações filantrópicas comunitárias a grandes financiadores e agências de desenvolvimento.
Brasil: oportunidades e desafios
No Brasil, a filantropia comunitária começou a ser desenvolvida a partir dos anos 2000 com a criação de fundações comunitárias. Na fase inicial, esse movimento foi fortemente influenciado e alavancado por organizações internacionais, como Synergos e a Fundação Kellog. Anos mais tarde, as fundações familiares brasileiras, como a Fundação Tide Setubal e o Instituto Arapyaú, também tiveram um papel estratégico na criação de fundações e fundos comunitários como o Fundo Zona Leste Sustentável e a Tabôa – Fortalecimento Comunitário, respectivamente.
Erika aponta o nicho da filantropia familiar como uma das oportunidades para o campo da filantropia comunitária no Brasil em razão da similaridade entre ambos. “Há muito espaço para que a filantropia comunitária seja incluída no olhar do investidor familiar, que já atua nos territórios.”
Outra oportunidade de alavancar o modelo, segundo a gerente, consiste em algo que à primeira vista pode parecer um desafio. “A filantropia comunitária é uma nova forma de fazer filantropia ainda muito desconhecida no Brasil, não é algo óbvio. Por isso mesmo existe a possibilidade de fomentá-la, inclusive como inovação dentro do setor”. Nesse sentido, ela aponta a falta de conhecimento sobre o campo como um desafio a ser superado.
Estratégias e ações para o fortalecimento da filantropia comunitária
Erika afirma que o grantmaking é uma estratégia fundamental para o fortalecimento desse tipo de filantropia. “Para que uma comunidade possa se desenvolver, ela precisa ter uma sociedade civil forte. Aí está a importância do apoio do investimento social privado às organizações da sociedade civil, aos movimentos sociais e ao desenvolvimento de novas lideranças representativas de vários setores dentro das comunidades.”
A gerente menciona ainda a economia solidária na forma de cooperativas e os negócios de impacto socioambiental como estratégias com grande potencial de alavancar o desenvolvimento sustentável de territórios e comunidades. “Estamos falando de micro e pequenos empreendedores do próprio território olhando para as potencialidades e características daquela comunidade.”
Erika cita ainda a criação de fundos comunitários como estratégia para o fortalecimento da filantropia comunitária. “Acreditamos no potencial da cultura de fundos para o fortalecimento do investimento social privado. Em vez de criar milhares de novas organizações, teremos uma estrutura que faça essa ponte entre doadores e OSCs, movimentos e lideranças que estejam promovendo uma causa ou o desenvolvimento de um determinado território.”
Case
A Taboa, associação que fomenta iniciativas de base comunitária e empreendimentos socioeconômicos com a finalidade de valorizar a cultura local, a diversidade e contribuir para a geração de prosperidade e qualidade de vida da região da Costa do Cacau, no sul da Bahia, é fruto de uma experiência de filantropia comunitária.
A iniciativa é um desdobramento do Programa Bahia, do Instituto Arapyaú, que atua em seis municípios da região: Canavieiras, Ilhéus, Itabuna, Itacaré, Una e Uruçuca. O programa oferece apoio à transformação do território por meio da consolidação de cadeias produtivas (cacau e chocolate, silvicultura e economia criativa), práticas transformadoras na educação e fortalecimento da cidadania.
“Um aprendizado ao longo do tempo fundamental para garantir algum tipo de escala e continuidade foi entender que o Arapyaú é muito pequeno e seria muita pretensão achar que a gente conseguiria mudar a realidade de seis municípios”, observou Thaís Ferraz, responsável pela área de Estratégia e Comunicação do Instituto Arapyaú, se referindo à importância da articulação com as políticas públicas da região.
Ela explica que a Tabôa foi resultado do estímulo do Instituto de empoderar a comunidade para que ela tivesse autonomia para decidir que projetos e ações fariam sentido para a região. O apoio se dá a partir de dois mecanismos: um fundo filantrópico para fortalecimento comunitário e uma linha de microcrédito que atende à demanda de estímulo ao empreendedorismo.
A Tabôa iniciou sua atuação em 2015, no distrito de Serra Grande, em Uruçuca, e em comunidades do entorno do Parque Estadual da Serra do Conduru. A partir de 2017, a associação ampliou sua atuação para outras comunidades localizadas nos municípios de Ilhéus, Uruçuca e Itacaré.
Próximos passos
Graciela explica que o encontro foi um ponto de partida para alavancar outros processos que implicarão desde novos debates para a troca de experiências e o engajamento e sensibilização de novos atores que atuam no campo da filantropia e do investimento social privado até o fomento à criação de fundos comunitários e linhas de financiamento e o apoio a doadores e organizações locais que queiram desenvolver ações no campo da filantropia comunitária.
“A filantropia comunitária é um trabalho a ser feito com as comunidades, não para as comunidades. A ideia é que o financiador possa alavancar processos locais respeitando suas dinâmicas próprias. Trata-se de um processo de coprodução e de coinvestimento e de pensar de outra forma essas relações.”