Inovação social: o que há embaixo deste guarda-chuva?

Por: Instituto Sabin| Notícias| 16/04/2018

 

Fábio Deboni[1]

 

Narrativas e confluências

Lidamos com uma situação paradoxal no Brasil (e América Latina): nunca se falou tanto sobre inovação social, nunca o universo de experiências práticas neste campo esteve em tanta evidência, mas, ao mesmo tempo, não temos ainda um entendimento mínimo sobre o que, de fato, é inovação social. Em outras palavras, temos muitas práticas de inovação social, mas não sabemos ao certo o que este conceito significa.

Isso faz emergir diferentes narrativas sobre o que seria inovação social e quais práticas poderiam ser enquadradas como tal e quais não.

Como a natureza do conceito é bastante ampla e aberta, ele tem sido usado como uma espécie de guarda-chuva sob o qual se tem pendurado diversos temas e práticas. Até aí tudo bem, pois, de fato, o arcabouço conceitual, temático e metodológico da inovação social é bastante amplo e está espelhado na infinidade de experiências práticas presentes em nosso contexto regional.

O que seria então de se esperar que a partir dessa diversidade de práticas emergisse uma complexidade maior de compreensões e percepções sobre o tema, parece não ser uma realidade. A diversidade de práticas parece não estar devidamente plasmada na apropriação conceitual de inovação social que parece estar ocorrendo na região, em especial no Brasil.

É este o ponto paradoxal que sinalizamos no início desta reflexão. Algumas narrativas sobre inovação social parecem ganhar corpo no Brasil, dando uma falsa impressão de que elas esgotam toda a abrangência possível do tema. Como veremos adiante, elas estão longe de representar toda a abrangência do tema.

Duas narrativas parecem ter ocupado este espaço até o momento, nos dando uma falsa impressão de que para ser “inovação social” seria preciso estar ancorado em alguma delas.

A primeira é mais recente e se vincula ao campo das finanças sociais e negócios de impacto. Ela está orientada na tese de que inovação social se resumiria a este novo campo, sendo, portanto, a percepção de que modelos de negócio para enfrentar problemas socioambientais seria, em si, a inovação social.

Está claro que soluções de mercado podem enfrentar problemas socioambientais, e que estes mecanismos também estão ancorados sob o guarda-chuva da inovação social. O problema desta narrativa é que ela tem reduzido a compreensão apenas a esta vertente, o que parece não contribuir muito para que o tema da inovação social conceitualmente se assente sobre bases mais plurais e diversas. Já discutimos anteriormente esta questão[2].

Outra narrativa presente e mais “antiga” procura delimitar a inovação social ao campo de atuação do terceiro setor – das OSCs e movimentos sociais – sendo este campo o que deteria maior protagonismo e legitimidade em liderar e impulsionar a “verdadeira”(genuína) inovação social. Esta visão também traz consigo uma armadilha reducionista ao tentar contrapor a outra narrativa (de mercado) de forma também reducionista.

Historicamente o terceiro setor colocou em prática diversas iniciativas de/para/sobre inovação social, sem necessariamente utilizar este “rótulo”. Construíram um amplo repertório de experiências, conexões e formas de atuar que em muito se conectam com a compreensão (mais atual) de inovação social. O contraponto a esta visão reside no fato de que a inovação social não está restrita a um único setor; seu “mandato” é compartilhado por múltiplos setores. Esta é a sua natureza. Portanto, ela não é passível de ser reivindicada por um único setor.

Em suma, ambas narrativas partem do princípio de que a inovação social estaria sob a liderança e o protagonismo deste ou daquele setor – seja das finanças sociais e negócios de impacto, seja do terceiro setor. Se fôssemos responder de forma simplista, a resposta a esta questão seria “sim” e “não”, ou seja, sim, estes setores vem sendo protagonistas na temática da inovação social e, não, eles não são os únicos “pais desta criança”. Há diversos outros, como veremos adiante.

 

O que se discute por aí

Assim como em solo tupiniquim, em outros países o debate sobre inovação social vem ganhando terreno e despertado boas reflexões nos diversos segmentos envolvidos com este tema – fundações, OSCs, universidades, governos, empresas, cidadãos.

Na literatura internacional é possível encontrar importante alerta sobre este tipo de visão reducionista sobre o tema:

“…a inovação social foi amplamente reduzida ao terceiro setor e aos empreendimentos sociais – e mais recentemente ao esforço de escala das startups (negócios de impacto)” (Vision and Trends of Social Innovation for Europe (European Comision, 2017)

Como vimos, críticas sobre a real capacidade de soluções de mercado no enfrentamento a problemas sociais sistêmicos também vêm ganhando força ao redor do mundo, nos provocando a debater a necessidade do fortalecimento da esfera pública.

“A transformação efetiva e a igualdade que todos os cidadãos merecem e que o bem público exige, só podem ser alcançadas na medida em que os cidadãos possam efetivamente usar sua voz política e não saírem da esfera pública” (Social Enterprise Is Not Social Change, SSIR, 2018[3])

“A importância da política e das relações de poder na determinação da criação, aceitação e disseminação da inovação social” (Vision and Trends of Social Innovation for Europe (European Comision, 2017)

 

Na medida em que estas agendas avançam – negócios de impacto,  sustentabilidade das OSCs, fortalecimento da esfera pública, dentre outras – elas também colocam a compreensão de inovação social em xeque, pois amplia-se muito o seu arco de relações trazendo consigo contradições inerentes a agendas muito amplas.

Um panorama conceitual da miscelânea de conceitos, interfaces, percepções e dilemas da inovação social pode ser encontrada neste estudo.[4] (Social innovation futures: beyond policy panacea and conceptual ambiguity, 2014). Nele, é possível se aprofundar melhor neste “xeque” que este campo vem sofrendo, sem, com isso, esvaziarmos sua relevância e contribuição a agendas públicas e de transformação socioambiental.

Como o foco desta reflexão não é acadêmico, feita esta ressalva conceitual, podemos avançar no sentido de fazer um esforço empírico de identificação das diversas narrativas presentes (em maior ou menor grau) no campo da inovação social e áreas afins no Brasil.

A intenção com este raciocínio é tentar responder a questões como: quais seriam as narrativas possíveis (além das duas anteriores) que compõem um espectro mais diverso sobre o tema da inovação social? Como ampliar as trilhas de aprendizagem e de práticas sobre o tema? Como melhor compreender a complexidade do tema?

 

O que mais há sob o guarda-chuva?

Assumindo que as duas narrativas anteriores estão sob o guarda-chuva conceitual da inovação social, quais então seriam as outras narrativas que também estão alinhadas ao conceito, mas que tem sido menos percebidas no campo?

O quadro, a seguir, procura compor este mosaico de dimensões, segmentos e narrativas que sustentariam os pilares do conceito de inovação social, totalmente passível de críticas, incrementos e avanços.

Quadro 1 – Dimensões, segmentos, narrativas e hipóteses que compõem o campo da inovação social

Dimensões/Temas Segmentos/Setores Narrativas e hipóteses mais óbvias
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Inovação Social

Finanças Sociais e Negócios de  Impacto Organizações que integram o ecossistema de finanças sociais e negócios de impacto (intermediários, investidores, empreendedores sociais, etc) Os empreendedores de negócios de impacto são os, que, de fato, estão impulsionando a inovação social.

Os negócios de impacto são as verdadeiras pontas de lança da inovação social.

Organizações da Sociedade Civil (OSCs) / Terceiro Setor OSCs, movimentos sociais – espectro amplo do terceiro setor São as OSCs que, de fato, detêm a real legitimidade de impulsionarem inovação social. São elas que conhecem a fundo o tema e que estão próximas da “ponta”.
Investimento Social Privado (ISP) Institutos e Fundações

Setores de responsabilidade social de empresas

Institutos, fundações e empresas parecem não ter assumido, ainda, um papel ativo na incorporação da inovação social em suas agendas. Ainda estão em busca de “um lugar ao sol” neste tema.
Academia Universidades, faculdades e centros de pesquisa É preciso avançar na identificação das bases conceituais que possibilite uma compreensão mais profunda sobre o tema.

Importância da formação de novos profissionais para liderarem com os desafios socioambientais complexos do mundo atual.

Mídia Meios de comunicação, novas plataformas de comunicação – youtubers, redes sociais, etc. A mídia tradicional segue pouco ativa como agente de disseminação de novas abordagens de/sobre inovação social.

As redes sociais têm abordado o tema de forma ainda pontual e superficial, mas têm um potencial a ser explorado.

Governos Governos municipais, estaduais e federal, assembleias legislativas, judiciário e ministério público.

Organizações próximas ao tema do Governo Aberto, inovação pública, nova política e afins.

O governo é, em geral, lento e reativo como agente catalisador de inovação social.

As políticas públicas têm um potencial enorme de escalar impacto social. Com a contribuição do campo da inovação social, elas podem ressignificar o papel do Estado nesta direção.

Empresas Setor empresarial em geral, associações de classe (federações de indústria, câmaras de lojistas, etc) O setor empresarial parece enxergar a inovação social a partir apenas do prisma da inovação convencional. Desta forma, tende a encarar o tema na ótica da tecnologia, da melhoria de processos e de eficiência.
Startups Startups em geral (sem ênfase em impacto social) O que importa na inovação (social) é a inovação tecnológica. É daí que virão as profundas transformações que nossa sociedade necessita/almeja. Parte destas transformações também vão gerar impacto socioambiental positivo.
Investidores Fundos de investimento (venture capital), investidores de impacto, investidores anjo Inovação Social está vinculada a startups e negócios de impacto, pois são a materialização de soluções na lógica do mercado. As outras formas de inovação social tendem a ser menos percebidas.
Cidadãos Quem deve fazer a diferença na sociedade são os cidadãos. Qualquer transformação (social, ambiental, cidadã) deve estar centrada na atuação deles e não das instituições e setores já estabelecidos, sobretudo, governos. Além do papel individual, o cidadão tende a considerar o mercado como um player também importante neste sentido.

Como se vê, o quadro acima nos oferece diversas narrativas e hipóteses mais óbvias a partir da ótica de cada segmento. Algumas são contraditórias e acentuam ainda mais a necessidade de aprofundar o meta-debate sobre inovação social. Exemplo: há visões mais centradas no indivíduo e no mercado, tendendo a esvaziar o papel da esfera pública neste sentido, enquanto que outras vão justamente na direção oposta.

Uma reflexão mais aprofundada sobre cada narrativa e as relações possíveis entre elas ficará para um segundo momento. O foco aqui é o de possibilitar uma visão mais panorâmica do tema como estímulo ao debate que decorre a partir dela.

 

Abordagens didáticas, mas não simplistas

Uma abordagem metodológica muito utilizada na área de inovação social – a espiral (vide a seguir) – já é bastante difundida dentro e fora do Brasil – também vem recebendo críticas sobre a sua real capacidade de ilustrar de forma simples questões e abordagens complexas sem perder sua essência.

A conceituação “clássica” da espiral da inovação social e seus processos é certamente útil, mas, primeiro não leva em conta a complexidade e a interconexão dos desafios globais que a inovação social em sua dimensão sistêmica é chamada a responder e, em segundo lugar, não considera o fato de que a inovação está longe de ser um processo linear”. (Vision and Trends of Social Innovation for Europe (European Comision, 2017)

 

Como se vê, este tem sido um pano de fundo de difícil resolução que a área da inovação social tem pela frente. Está óbvio que o tema é complexo e multidimensional, mas não está tão claro como abordá-lo de forma didática, sem ser simplista. Se o modelo da espiral, que aparentemente vinha confortando o campo parece não atender mais plenamente, quais seriam então as alternativas a ele?

 

“A atual interpretação da inovação social é inadequada para abordar esse nível de complexidade” (que a agenda requer)

 

“Mais importante ainda, a interpretação pragmática não considera a importância dos valores como a pluralidade – não apenas aqueles que impulsionam o(s) inovador(es), mas os de todas as pessoas envolvidas na inovação” (social).

(Vision and Trends of Social Innovation for Europe (European Comision, 2017)

 

Esta nova abordagem conceitual não pode se sustentar sobre bases antigas – formatos organizacionais e programáticos atuais e vigentes. Ou seja, para a minha organização atuar com mais profundidade com inovação social, ela precisará, inevitavelmente, repensar e redefinir sua própria forma de atuação, seu modelo organizacional, suas plataformas e programas de atuação, o perfil de sua equipe, sua alocação orçamentária, seus indicadores e métricas, etc. Como se nota, o “buraco é bem mais embaixo” do que supúnhamos.

 

Como agir?

Mas então, como é possível agir? Ainda que haja bastante complexidade no tema, como não cair na paralisia diante desta realidade? Por onde começar?

Em artigo anterior[5], procuramos sugerir alguns caminhos viáveis para Institutos e Fundações que queiram atuar de forma mais consistente neste campo. Para além deles, temos percebido a relevância de sintonizar nossos radares com o debate que vem acontecendo fora do Brasil ao redor do tema.

Neste sentido, a literatura europeia tem nos trazido 2 elementos importantes que podem nos inspirar a traçar trilhas viáveis para orientar nossas organizações a melhor se posicionarem/moverem-se em direção ao tema.

O primeiro diz respeito a 7 tendências da inovação social a partir da realidade europeia. Como se observa, são questões bastante presentes por aqui nos debates e reflexões feitos no âmbito do terceiro setor e do investimento social privado:

Tendências em inovação social[6]

  1. Capacidade institucional e bem-estar
    2. Democracia e confiança
    3. Competências e futuro do trabalho
    4. Tecnologias da Internet e interações on-line / off-line
    5. Novos instrumentos financeiros
    6. Reforma urbana
    7. Interdependências globais

 

O segundo elemento nos oferece algumas diretrizes que sinalizam rumos que as tendências anteriores podem trilhar.

  • Centrado em pessoas, porque elas são a melhor fonte de inovação. Invista em pessoas para que elas possam moldar e impulsionar a inovação de acordo com suas aspirações e valores.
  • Focado em transformar o potencial de pessoas e instituições em resultados positivos, destacando a inovação social na perspectiva territorial como laboratórios de experimentação de novos modelos e de ganho de escala
  • Com foco na elaboração de políticas públicas e na repactuação de novos contratos sociais em nossa região[7]

 

Temos então um conjunto de trilhas temáticas e setoriais, e inspirações de formas de atuação que podem servir como ponto de partida para nossas organizações refletirem sobre o tema. Como já ficou claro ao(à) leitor(a), não há manual de instrução que nos oriente sobre como atuar. Portanto, será mais do que necessário arregaçar as mangas e suar a camisa pra construir estratégias próprias de atuação.

Temos defendido a importância de ampliarmos o debate sobre inovação social (meta-debate) a partir da necessidade de que este campo seja mais bem percebido como um campo em si (e com todas as suas interfaces possíveis). A partir daí, ficará mais nítido quais os caminhos a serem trilhados. Como se observa, abaixo, ainda há muitas questões não bem compreendidas nesta área:

 

“Ainda que as inovações sociais surjam em muitos âmbitos e apesar de a inovação social ser pesquisada a partir de diferentes abordagens teóricas e metodológicas, as condições em que elas são implementadas, florescem, se sustentam e finalmente contribuem para transformações sociais ainda não são completamente compreendidas, tanto na esfera pública quanto acadêmica. No entanto, sobretudo no momento atual de crises social, política e econômica, a inovação social vem despertando muitas esperanças e, ainda mais, desencadeando debates acadêmicos e políticos” (Jenson & Harrisson, 2013[8])

 

[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Atualmente coordena a Rede Temática de Negócios de Impacto do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) em conjunto com o ICE. Membro do Conselho do Gife. É autor do livro “Reflexões contemporâneas sobre Investimento Social Privado”. [email protected]

[2] https://gife.org.br/inovacao-social-negocios-de-impacto/

[3] https://ssir.org/articles/entry/social_enterprise_is_not_social_change?utm_source=Enews&utm_medium=Email&utm_campaign=SSIR_Now&utm_content=Title (acessado em março de 2018)

[4] http://www.transitsocialinnovation.eu/content/original/Book%20covers/Local%20PDFs/158%20Paper%20Social%20innovation%20future%20beyond%20policy%20panacea%20and%20conceptual%20ambiguity%202014.pdf

[5] https://gife.org.br/inovacao-social-negocios-de-impacto/

[6] Recomendo fortemente uma leitura mais aprofundada deste estudo, tão citado ao longo do artigo: https://publications.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/a97a2fbd-b7da-11e7-837e-01aa75ed71a1/language-en

[7] Essa última perspectiva faz bastante sentido para o contexto europeu, que historicamente tem um modelo de bem-estar social bastante reconhecido. Talvez para o contexto latino-americano (e outras regiões em desenvolvimento) esta dimensão necessite de maior investimento e energia para se viabilizar.

[8] http://www.net4society.eu/_media/social_innovation.pdf


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