Atuação do investimento social em crises emergenciais é fundamental, mas ainda é desarticulada

As recentes enchentes no Rio Grande do Sul moveram o país numa rede de solidariedade. Não foi diferente com o Investimento Social Privado, que passou a alocar recursos no enfrentamento à situação de calamidade. No entanto, a crise tem levantado questões sobre como o setor tem se organizado para enfrentar esses eventos extremos. O especial redeGIFE de maio aborda os caminhos  e desafios para o enfrentamento a essas emergências.

As duas primeiras décadas do século XXI têm sido marcadas por reiterados episódios globais de calamidades públicas. No Brasil, o mais recente envolve o Rio Grande do Sul, onde temporais provocaram enchentes afetando 2.341.060 pessoas em 467 municípios.

A pandemia de Covid-19 e a crise humanitária Yanomami são outros exemplos de emergências que atingiram o país nos últimos anos. Frente aos desafios para responder a esses cenários, organizações da sociedade civil e o investimento social privado despontam como aliados.

No Rio Grande do Sul, o Fundo Positivo tem buscado oferecer respostas ágeis e desburocratizadas. “A crise iniciou no final de semana. Na segunda-feira, a diretoria aprovou ajuda financeira emergencial às organizações apoiadas pelo Fundo no estado. No mesmo dia o recurso saiu”, explica Harley Henriques, coordenador do Fundo.


São Sebastião (SP), 20-02-2023, Desmoronamento causado pelas chuvas no bairro Itatinga, conhecido como Topolândia, no litoral norte de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

São Sebastião (SP), 22/02/2023, Trecho de interdição parcial na rodovia SP-55 Rio-Santos entre o centro de São Sebastião e o bairro Barra do Sahy.

São Sebastião (SP), 21/02/2023, Troncos de árvores e água do mar barrenta na praia de Boiçucanga após enchentes e deslizamentos no litoral norte de São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A United Way Brasil (UWB) mobilizou as empresas associadas para arrecadar recursos. Para Gabriela Bighetti, CEO da UWB, a atuação emergencial é uma obrigação social das organizações. Em 2022, a UWB estruturou sua frente emergencial e vem se aprimorando. Ela acredita ser imprescindível articular parcerias locais, com organizações conhecedoras dos territórios. 

Perspectiva também partilhada por Allyne Andrade, superintendente adjunta do Fundo Brasil. “São essas organizações que têm maiores condições de dar respostas rápidas na questão de emergência. Vamos precisar fortalecer as instituições locais para trazer respostas mais estruturadas de prevenção, mitigação e adaptação para essas emergências.”

Porto Alegre (RS), 17/05/2024 –  Centro histórico de Porto Alegre permanece alagado devido as fortes chuvas dos últimos dias. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

“Agora tem muita doação, e depois?”

Maria Tugira tem 64 anos, dos quais 40 dedicados ao trabalho como catadora de recicláveis. Moradora de Uruguaiana (RS), onde a cheia do Rio Uruguai deixou mais de 2 mil pessoas desabrigadas, ela e dezenas de catadores estão impossibilitados de escoar sua produção e gerar renda para suas famílias. É por isso que ela tem defendido a campanha para propor ao governo federal a criação do Auxílio Calamidade Climática, por meio do qual seria garantido um salário mínimo por dois anos às vítimas de emergências climáticas.

“Com essa tristeza no estado, agora tem muita doação, mas e depois? No primeiro momento todo mundo se solidariza, mas aos poucos cai no esquecimento. A gente já é mulher negra, de pouca renda, quando acontece uma situação dessa, fica com menos ainda”, desabafa. A preocupação é justificável.

O relatório final do estudo Impacto da Covid-19 nas OSCs Brasileiras: da Resposta Imediata à Resiliência, realizado pela Mobiliza e Reos Partners, em 2020, mostrou que 73% das organizações respondentes tiveram queda de captação e apoio institucional. 

Enquanto isso, o Censo GIFE 2020 constatou um investimento histórico de R$ 6,1 bilhões dos associados, sendo 2,6 bilhões direcionados ao enfrentamento da Covid-19. Passada a crise, os patamares financeiros sofreram baixas, tendo o Censo 22-23 constatado 4,8 bilhões investidos.

Em um ranking de 18 focos de atuação dos associados GIFE, “apoio emergencial” surge em 9º lugar com apenas 28% de incentivo.

José Moroni é integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político, uma das organizações que encabeça a proposta do Auxílio. Ele explica que a sequência de eventos climáticos severos enfrentados pelo país tem sido tratada pelos governos caso a caso. “Não temos uma política pública a ser acionada nesses casos. Governos ficam dias debatendo o que fazer e a responsabilidade de cada um.” 

Essa não é a única proposta por respostas estruturadas a eventos extremos. A deputada federal Erika Hilton protocolou um Projeto de Lei que visa instituir a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDAC).

Para Naira Santa Rita, diretora executiva do Instituto DuClima, que colaborou na criação da política, ela é crucial para criar respostas articuladas e humanas a esses eventos. O PNDAC foi inspirado na experiência dela como deslocada durante o evento climático em Petrópolis (RJ), em 2022. A ativista e sua família perderam a casa, e enfrentaram a instabilidade de não saber para onde ir. “Vivenciar as dificuldades do deslocamento me permitiu compreender de forma direta a necessidade urgente de resposta imediata, eficaz e humana aos afetados.”

Porto Alegre (RS), 17/05/2024 –  Cerca de 2000 mil voluntários ajudam na triagem e montagem dos kits com doações para serem distribuídos à população, no maior Centro logístico da defesa Civil Estadual de Porto Alegre. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

O setor aprende com os erros?

Quando olha para o histórico de atuação do terceiro setor nessa sequência de tragédias, o diretor executivo da Ação da Cidadania, Kiko Afonso, observa um cenário que se repete.

De acordo com ele, sempre há um início atribulado de doações, sobrecarregando as organizações devido às cobranças para atuar rapidamente. Além disso, muitas doações físicas, como alimentos, são perdidas pela dificuldade logística de estocar, triar e transportar os itens. “Parece que aprendemos pouco com essas tragédias. Sobra solidariedade, mas falta compreensão de como é mais importante a doação financeira.”

Para Kiko, muitos dos erros persistem por falta de interesse nas resoluções. “Muitas empresas não estão preocupadas com a tragédia, mas em aparecer. Vão continuar cometendo os mesmos erros e tentando fazer das OSCs braços operacionais de uma atuação de marketing.”

Patrícia Loyola, diretora de gestão e investimento social da Comunitas, chama atenção para a necessidade de documentar as estratégias e aprendizados implementados durante as situações de emergência no Brasil. “Talvez o ponto falho mais estruturante é que o Brasil usa pouco o conhecimento acumulado de organizações que atuam em tragédias humanitárias, seja do Brasil ou do exterior, em contextos diversos como fome, inundações ou terremotos.” 

Na mesma linha, Paulo Boneff, Head Global de Desenvolvimento Organizacional e Responsabilidade Social da Gerdau, acredita que as experiências passadas devem servir para criação de conhecimento. “Nós temos a oportunidade de criar conhecimento por meio dos fatos passados e construir soluções para os fatos que ainda estão por vir. Uma sociedade integrada em seus diferentes setores será fator crítico para que possamos superar os desafios ambientais e sociais que virão.”

Daniela Damiati, coordenadora de engajamento do Instituto Ethos, assinala esta importância da articulação entre os setores. “Para fortalecer e estruturar de forma mais assertiva as reações em emergências, os três setores – público, privado e terceiro setor – precisam trabalhar de forma muito integrada, propiciando uma diversidade de visões e expertises. Esse caminho é mais do que possível, é necessário.”

Gabriel Cardoso, gerente executivo do Instituto Sabin, por outro lado, avalia que o campo tem vivido uma ligeira evolução. “Há uma mobilização muito célere, capacidade de atrair novos atores a partir de uma comunicação mais eficiente do que em processos anteriores”. Ainda assim, o gerente não deixa de apontar a atuação desarticulada como principal erro do campo. “Há um movimento bem emocional. É preciso entender quem tem recursos, capacidades ou competências organizacionais para responder a cada necessidade.”

Diálogo é caminho para respostas estruturadas

O diálogo e maior efetividade no destino dos recursos são alguns dos caminhos apontados para superar os problemas enfrentados. “Precisamos de eficiência na alocação de recursos: financeiros, de tempo, compreensão de território. Quando se trabalha articulado, os papéis são melhor ocupados, e os recursos melhor gastos”, pontua Gabriel Cardoso.

Gabriela Bighetti concorda e vai além. Para ela, é necessário atuar preventivamente para evitar novas tragédias. Também afirma ser crucial que as organizações sociais “fortaleçam os laços de confiança com seus doadores por meio da transparência na gestão de recursos e da prestação de contas constante”.

Paulo Boneff, reforça a importância de se pensar estratégias que vão além do auge das crises. “Entendo que a sensibilização da maior parte da sociedade ocorre de forma situacional no auge dos eventos emergenciais. Mas nós como terceiro setor organizado devemos debater e desenhar soluções que sejam perenes e funcionem como sistemas pró ativos.”

Kiko Afonso lembra que não é possível cobrar ações rápidas das organizações, se estas não contarem com apoio contínuo. “As doações só chegam nesse momento. Assim não é possível se organizar para atuar de forma consistente, planejada. Quando tudo está acabando, a sociedade civil se apresenta e todos elogiam. Mas durante o ano, as pessoas não doam.”

Naira Santa Rita alerta que, embora a ajuda imediata seja crucial, existe uma lacuna na transição da ajuda de emergência para a recuperação e o desenvolvimento a longo prazo. “Melhorias nas infraestruturas, restauração dos meios de subsistência e garantir que a ajuda chegue às populações mais marginalizadas e de difícil acesso como as indígenas e quilombolas continua um desafio”, finaliza.

Rede GIFE pelo Rio Grande do Sul

Com a atuação de diversos associados do GIFE frente à emergência do Rio Grande do Sul, a instituição fez um chamado para um encontro que debateu a situação do estado, os desafios e as potencialidades de atuação e apoio emergencial – de curto, médio e longo prazo. Ao todo, 28 associados estiveram presentes: Tecendo Infâncias; Alana; Vale; Instituto Helda Gerdau; RaiaDrogasil; Arapyaú; Instituto Justiça; Santander; Novo Nordisk; Instituto Helda Gerdau Arcelor Mittal; Umane; B3 Social; Aegea; Instituto Betty e Jacob Lafer; Instituto Votorantim, Instituto Ultra; ICE; Instituto Claro; Aegea Saneamento; Instituto Itaúsa; Instituto Ultra; Gerdau; Instituto Cactus; J&J; Fundação Itaú; Instituto Paulo Gontijo; Iamar; Sitawi.

Também associado ao GIFE, o Instituto Elisabetha Randon integrará o Comitê Gestor da Casa Civil do Estado do Rio Grande do Sul para auxiliar na reconstrução de municípios e gerir doações financeiras.

Um fundo pela reconstrução do RS

A Gerdau, em parceria com a Gerando Falcões, criou um fundo aberto à captação por outras empresas, destinado a mobilizar recursos financeiros com foco em habitação na etapa de reconstrução no Rio Grande do Sul. A proposta é se tornar um ecossistema colaborativo com a participação de outras organizações, visando ampliar a captação de recursos que serão usados para atender territórios e famílias em vulnerabilidade.

Leia também:

Entrevistados

Allyne Andrade e Silva

Fundo Brasil

Daniela Damiati

Instituto Ethos

Gabriel Cardoso

Instituto Sabin

Gabriela Bighetti

UWB

Harley Nascimento

Fundo Positivo

José Moroni

Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político

Kiko Afonso

Ação da Cidadania

Maria Tugira

Auxílio Calamidade Climática

Naira Santa Rita

Instituto DuClima

Patrícia Loyola

Comunitas

Paulo Boneff

 Gerdau e Conselho do GIFE

Porto Alegre (RS), 20/05/2024 – Nível da água baixa e começa a mostrar lixo e entulho, no Centro Histórico de Porto Alegre. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Expediente

Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO

Geovana Miranda
ANALISTA DE COMUNICAÇÃO

Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO

Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO


Apoio institucional

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