Agosto é o mês da Filantropia Negra. Como não poderia deixar de ser, o Especial redeGIFE é sobre esta prática existente desde o início da diáspora, quando africanos foram sequestrados pelo colonialismo europeu para serem mão de obra escrava em diversos países do mundo. Conversamos com historiadoras(es), pessoas do investimento social privado e atuantes nas organizações negras que lutam contra o racismo e por uma sociedade menos desigual. Em infográfico, reunimos informações de como a filantropia negra se manifesta no Brasil de diferentes formas “do ontem ao agora”
Também conhecida como filantropia negra, a prática de se organizar coletivamente pela proteção social e emancipação do povo negro no Brasil é secular. De acordo com a historiadora Luciana Brito, especialista nos estudos sobre escravização, abolição e relações raciais no Brasil e EUA, redes de apoio para arrecadar recursos e comprar alforrias são um exemplo dessa prática.
“É muito antigo o entendimento da necessidade da ajuda mútua como caminho para liberdade e autonomia financeira. Isso acontece em toda diáspora.”
As iniciativas coletivas também faziam parte das estratégias do povo negro. As irmandades religiosas negras se adaptaram ao catolicismo para sobrevivência de suas culturas e resistência frente ao período escravagista. Uma das experiências de maior destaque são as irmandades vinculadas a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que se proliferam pelo país desde o século XVI. Inicialmente originadas em Pernambuco, outras experiências se consolidaram em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará e Bahia.
Ilê Axé Onì Dankô
Em Cachoeira (BA), a Irmandade da Boa Morte é formada apenas por mulheres negras e realiza, anualmente, há mais de 200 anos, a tradicional festa em louvor à Nossa Senhora da Boa Morte.
Salvador (BA) abriga, há mais de 190 anos, a primeira associação civil negra das Américas, de acordo com o historiador Lucas Campos. A Sociedade Protetora dos Desvalidos é uma das expoentes do associativismo negro.
“Dentro da pluralidade da resistência negra, existia a sobrevivência naquele ambiente escravista.”
Os clubes e Associações dos Homens de Cor, que se consolidaram, sobretudo em São Paulo, no final do século XIX e início do século XX, são também exemplos históricos de filantropia negra. Eram grupos que, seguindo os moldes de clubes sociais dos imigrantes europeus, se enraizaram nos centros urbanos da época, reivindicam entre outras demandas, educação para os negros.
Em setembro de 2020 foi criado o Fundo Agbara. O primeiro fundo filantrópico para mulheres negras do Brasil, maior grupo social do país, e também o mais vulnerável.
Para Aline Odara, idealizadora e diretora executiva, é possível pensar nas irmandades como os primeiros fundos geridos por pessoas negras no Brasil.
“A falta de política de reparação após a abolição manteve a população negra na base da pirâmide social. Precisamos de investimento social porque viemos de uma situação cruel de negligência sistemática.”
Sem posse da definição técnica, Aline Odara passou a praticar a filantropia negra a partir de campanhas de arrecadação coletiva para ajudar amigos prounistas em Campinas (SP). “O Agbara é fruto de políticas afirmativas de inclusão educacional”, declarou durante a segunda edição do “Mês da Filantropia Negra” (Black Philanthropy Month – BPM), realizado pelo GIFE, em parceria com a The WISE Fund e com o patrocínio da Aegea Saneamento e Instituto Aegea.
O Mês da Filantropia Negra é um movimento que surgiu nos EUA em 2011, como iniciativa da Dra. Jacqueline (“Jackie”) Copeland (The WISE Fund). O objetivo é, além de gerar reflexões sobre a diversidade da comunidade negra e suas interseccionalidades, investir em ações concretas para a inclusão social de pessoas negras.
Durante o evento, Helena Theodoro, presidente do Conselho do Fundo ELAS+, trouxe que além do conceito, é necessário compreender que a resistência dos negros atravessou o Atlântico. O apoio entre os semelhantes é uma característica das culturas e povos de África, e se manifestava em situações como
“Estabelecer primeiro um princípio de que todos têm que comer três vezes ao dia, ter um teto sob a cabeça, e o seu território para ser construído e preservado.”
Durante a pandemia de Covid-19, o Fundo Agbara sistematizou as doações coletivas. Atualmente, são mais de 800 mulheres atendidas por meio de jornadas formativas com capacitação técnica, política, mentorias e aportes financeiros.
Em Salvador, o Bloco Commanches do Pelô, criado em 1974 com objetivo de resgatar a memória cultural e racial dos negros e indígenas no Carnaval, também é um reduto de apoio para a comunidade. Jorginho Comancheiro, presidente da entidade, lembra que todos os anos os blocos afros passam por dificuldades de captar recursos, mas, durante a pandemia, e sem os eventos foi ainda mais difícil sobreviver. “Entregamos cestas básicas, gás de cozinha, tudo foi doado por parceiros e comerciantes locais.”
Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá para Equidade Racial, acredita que a doação também pode ser uma ferramenta de manutenção de status quo, pois nem todas elas têm como objetivo criar as condições para a superação das desigualdades. Assim, aponta a importância de qualificar o investimento para a filantropia negra.
Aline Odara defende que o apoio do investimento social é fundamental para que organizações como o Agbara continuem gerando impacto social positivo.
“Com cada vez menos recursos voltados para as populações negras e periféricas, é importantíssimo que o setor privado, que gera muita riqueza, mas também desigualdades sociais, se responsabilize pelos impactos negativos que geram.”
Entre os caminhos para democratizar os acessos ao campo da filantropia, aponta, está o fomento para criação e capacitação de organizações de pessoas negras e destaca a importância de políticas de ação afirmativa no setor privado, garantindo uma tomada de decisão cada vez mais diversa e equânime.
Para a filantropia negra ser sustentável é preciso ainda que as organizações tenham seus próprios endowments ou fundos patrimoniais. Por definição, são estruturas criadas para proporcionar sustentabilidade financeira a instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos e/ou para a execução de programas e projetos de interesse público. As doações recebidas ficam recolhidas em aplicações, e apenas os rendimentos podem ser resgatados e utilizados para financiar causas ou parte do funcionamento de organizações. No Brasil, a única organização negra que possui um fundo patrimonial é o Fundo Baobá.
Algumas iniciativas têm sido feitas para mudar este cenário. É o caso do edital Aliança Negra Pelo Fim da Violência, uma parceria do ELAS+ com a Fundação Ford. O projeto apoiou 78 organizações com liderança de mulheres cis e trans negras que atuam no enfrentamento à violência racial. Em 2021, o Fundo Baobá lançou o edital Quilombolas Em Defesa: Vidas, Direitos e Justiça, para apoiar projetos de organizações quilombolas e, em 2019, o Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, apoiou lideranças e organizações.
Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
Leonardo Nunes
ASSISTÊNCIA DE COMUNICAÇÃO
Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO & INFOGRÁFICO
Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO