Investidores sociais precisam sair da inércia e colocar no centro do debate a questão da equidade e diversidade, apontam especialistas

Por: GIFE| Notícias| 19/03/2018

Close up of young people putting their hands together. Team with stack of hands showing unity and teamwork.

“Hoje, quem tem o potencial de provocar mudanças na estrutura de desigualdade do país é o protagonismo da população negra e de mulheres que estão desafiando o silêncio. Tivemos, claro, ao longo da história, vários movimentos que se colocaram em relação a isso, mas agora, pela primeira vez, há uma janela de oportunidade dessas vozes alcançarem a esfera público para além de seus movimentos.  É uma força perturbadora, disruptiva e que traz novos atores, novas narrativas. E isso coloca para nós, enquanto investidores sociais, a pergunta: qual é a contribuição que estamos dando para isso?  Vamos reproduzir a inércia, o padrão histórico, que é ignorar, jogar para debaixo do pano a desigualdade de raça e gênero, virar as costas a esse novos atores e novas questões trazidas por esse protagonismo?”.

Essa é a provocação que Átila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil, pretende trazer a tona em sua fala como debatedor da mesa “Público, privado e comum: chamados para novos campos de ação”, parte da programação do X Congresso GIFE, que terá como tema “Brasil, democracia e desenvolvimento sustentável”. O evento será realizado de 4 a 6 de abril, em São Paulo. O tema será pauta de destaque também na mesa “Brasil e investimento social: caminhos para a promoção de equidade e diversidade”

O alerta e o convite para novas posturas, garante Átila, é necessário, principalmente quando a última edição do Censo GIFE  levantou que apenas 2% consideram características de raça para sua atuação e 4% consideram características de gênero. “Os dados do Censo deveriam soar como um alarme de urgência. A igualdade precisa ser um valor a ser abraçado plenamente por todos os setores. Nós, como lideranças que somos, temos que ter a humildade e a generosidade para reconhecer o lugar de privilégios que ocupamos e abrirmos espaços para que essas novas vozes possam florescer na sua potência. Nós, enquanto terceiro setor, temos condições de acabar com esse ciclo vicioso e olhar o mundo em outra perspectiva”, ressalta o conselheiro do GIFE.

Para o diretor da Fundação Ford no Brasil, o passo a ser dado neste momento é o das lideranças das organizações reconhecerem de fato o déficit e o abismo que isso traz para o Brasil e que, cada instituição, possa escolher que caminho quer traçar.

“Precisamos olhar as várias esferas, que tipo de recursos, inteligências, parcerias e projetos temos que trazer e estabelecer que nos ajudem a encontrar o caminho. Precisamos que o setor, mais do que nunca, esteja preparado no seu modo de atuar nessa agenda. Não importa o que vai acontecer na esfera pública, o ISP precisa estar preparado. Nós somos aqueles que, em qualquer circunstância, seremos capazes de construir as pontes nesse universo tão desigual. Temos acesso a quem tem poder, a quem toma decisões estratégicas do ponto de investimento. Trata-se da agenda central para a democracia, para avanços dos direitos e da justiça social. Precisamos manter isso no centro e tirar da periferia”, destaca Átila.

Equidade e democracia

Desconforto. Para os especialistas, esse é ainda o sentimento gerado quando a pauta de debate – seja na mesa de jantar ou de reuniões nas empresas – é a questão do sexismo e racismo. Isso se deve por todo o histórico cultural do país que, apesar de estar em pleno século XXI, ainda não conseguiu superar.

Tanto é que apesar da população negra e de mulheres ser a maioria no Brasil – hoje, 54% dos brasileiros são negros e 51% são mulheres – ainda temos uma situação em que mulheres continuam ganhando muito menos que os homens, assim como os negros – como a apontou a pesquisa da OXFAM “A distância que nos une”. Só para se ter ideia, a renda de brancos e negros só será equiparada, se mantermos esse ritmo, em 2089.

“A questão é que o sexismo e o racismo histórico e estrutural fazem com que mulheres e negros sejam colocados em condição de inferioridade, em todas as esferas da vida e homens, particularmente os brancos, sejam considerados e se considerem superiores, perpetuando a situação de privilégio, justamente por estarem em lugares de poder que lhes permite criar condições para a manutenção da supremacia”, analisa Cida Bento, coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), e uma das debatedoras do Congresso GIFE.

Para a psicóloga e especialista no tema, a manutenção de amplos segmentos populacionais em situação de desvantagem é um gerador de instabilidade social, de violência, que fere o direito de todos e todas aos bens concretos e simbólicos da sociedade, o que impacta diretamente no desenvolvimento e na democracia.

“É uma perda de talentos que restringe o desenvolvimento social. Empobrece e apequena as possibilidades de evolução social, já que temos que nos limitar às possibilidades de um único grupo monolítico. Pessoas com deficiência, LGBTI e outros grupos excluídos, colocam o país no topo das piores estatísticas: campeão das desigualdades, da corrupção, de feminicídio. País que está ganhando fama por cometer o genocídio da juventude negra”, alerta.

Na avaliação da coordenadora do CEERT, o olhar atento a questões de equidade e diversidade tornam as instituições mais sustentáveis, mais conectadas à sociedade em que estão inseridas. “Produtos e serviços das instituições dialogam com as necessidades e desejos dos diferentes segmentos. Ônus e bônus da vida coletiva são compartilhados. Todos podem desenvolver sentimentos de pertencimento, de fazer parte do coletivo daquela cidade ou estado. É assim que podem se importar com os lugares onde vivem, e cuidar destes lugares. Nós fazemos as cidades sustentáveis, se nos acolhem. Ou não. Fica mais difícil a proliferação de aventureiros corruptos no trato da coisa pública”, completa.

Novas práticas para superar desafios

Para que seja possível avançar, os especialistas apontam a necessidade de incorporar a dimensão da equidade e diversidade em todas as práticas na sociedade brasileira. Isso significa, explica Átila Roque, que não basta aplicar políticas universais, como se o conjunto fosse igual.

“Não dá para dizer que só o fato de ter escola para todos vai fazer com que mais negros entrem na universidade, por exemplo. Quando herdamos um padrão de desigualdade tão abismal, seja de acesso a serviços, expectativa de vida, etc. o gap é muito alto. E fazer com que esse gap seja reduzido é preciso sim intervenções mais afirmativas. As cotas tiveram essa natureza, ajudaram a quebrar um padrão em um tempo, e trouxe para a cena novas vozes. Por isso, fazer política universal no Brasil é ter um recorte que reconheça que a desigualdade não é distribuída igualmente. Precisamos disso para produzir igualdade. A focalização com recorte afirmativo é parte integral de acesso à garantia de direitos universais”, pondera o diretor da Fundação Ford.

Cida Bento lembra que políticas que incidem sobre a pobreza não resolvem necessariamente o racismo e o sexismo. “Vemos isto nas pesquisas, mas também no racismo que atinge pessoas negras que estão ‘fora de lugar’, ou seja, em lugares de destaque ou poder. As situações de desigualdades raciais têm conexão com pobreza, mas pra resolver exclusão ou inferiorização de negros e mulheres, temos de entender e tratar de gênero e raça”, explica.

A coordenadora do CEERT também aponta a importância de trazer os segmentos que estão mais distantes das extensas zonas de tensão do país, aproximando-os para tentar compreendê-las e verificar o diferencial que podem fazer.  “As pessoas precisam entender que amor ao Brasil é se importar com suas mazelas também. E tentar fazer o seu melhor a partir do lugar onde estão. O começo é reconhecer e falar sobre este problema.  Decidir atuar sobre ele, fazer diagnósticos, desenhar plano de ações, com metas definidas. E monitorar. Exatamente como as instituições costumam proceder quando tem um desafio”.

Evento

No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial (21/03), será realizado no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, o seminário ‘Gente que Transforma a Educação: Experiências de Equidade Racial e de Gênero’ que promoverá uma reflexão sobre os avanços, impactos e desafios da educação para igualdade racial e de gênero, à luz da lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da cultura e história afro-brasileira em todas as escolas públicas e particulares do Ensino Fundamental e Ensino Médio. A lei garante uma ressignificação e valorização cultural das matrizes africanas que formam a diversidade cultural brasileira.

O seminário, iniciativa do CEERT em parceria com o Instituto Unibanco, SESC SP e Fundação Ford, apresentará as experiências das sete edições do Prêmio Educar para Igualdade Racial e de Gênero, que foi lançado, em 2002. O prêmio possui um acervo de quase três mil práticas escolares voltadas à promoção da igualdade étnico-racial e é reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) como uma das principais iniciativas voltas à equidade racial.

Entre os participantes estão educadores de diversas regiões do Brasil que apresentarão experiências já implementadas em escolas públicas e abordarão a importância de uma educação que valorize a diversidade e a cultura e história afro-brasileira como forma de reduzir a evasão escolar e melhorar o desempenho de crianças, adolescentes e jovens negros e negras nas escolas.

Os interessados em participar podem acessar o formulário de inscrição no site www.ceert.org.br

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