Entender o por que as empresas doam é chave para desenvolvimento da filantropia no país
Por: GIFE| Notícias| 05/07/2021*Esta reportagem integra a Série Conhecimento Emergência, uma sequência de textos destinados a cada um dos artigos e estudos produzidos no âmbito do eixo 5 (“Apoio ao acompanhamento e análise do conjunto das ações mobilizadas”) do projeto Emergência Covid-19, uma iniciativa do GIFE.
De acordo com o Monitor das Doações, 85% dos mais de R$ 7 bilhões doados para fazer frente à pandemia de Covid-19 vieram de empresas. Olhar para esse cenário e analisar como se deu a responsabilidade social e a filantropia corporativa no país foi o principal objetivo do artigo Filantropia Corporativa no Brasil: Uma Análise das Doações Empresariais em Meio à Pandemia da Covid-19, que compõe a coleção Estudos Emergência Covid.
Um grupo de pesquisadores construiu uma base de dados com as 150 maiores doações empresariais – de acordo com o Monitor das Doações e com a lista dos 100 maiores doadores da edição 78 da revista Forbes Brasil -, que foi analisada a partir da perspectiva da estratégia empresarial, além de entrevistas com atores de nove empresas entre as mais doadoras durante a pandemia.
Motivação
Um dos principais debates apresentados na publicação é sobre as motivações e reais intenções das doações realizadas por empresas. Em uma breve introdução histórica, os autores citam reflexões que defendem a conexão de doações com considerações mais abrangentes, que vão além da própria responsabilidade social corporativa.
Analisando a literatura internacional sobre o tema, não há consenso, e sim linhas que vão em direções opostas: enquanto alguns autores defendem que empresas não devem atuar socialmente e sim focar no lucro, outros afirmam que a atuação filantrópica pode ser entendida de forma estratégica e beneficiar a empresa, inclusive em sua dimensão lucrativa.
Para Marcos Paulo de Lucca-Silveira, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Filantropia da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES) e um dos autores do artigo, um dos principais feitos do estudo é ir contra essa dualidade de compreensão sobre a intenção de uma empresa ao doar.
“Se queremos entender por que e para onde as empresas doam, temos que nos afastar dessas ideias simples e duais, que podem ser atrativas, mas não explicam as reais motivações. As empresas doam por motivações puramente filantrópicas e por interesses ligados a ganhos reputacionais ou lucros”, explica.
Nesse sentido, o pesquisador defende que, para entender os reais impactos do montante doado, é necessário verificar se as empresas contam com alguma estratégia declarada de doação, quais critérios adotam, quem são os beneficiários finais das ações, entre outros pontos. “Precisamos entender quem doa, para onde doa, se essa doação gera o impacto desejado. Esses são pontos ainda poucos explorados, porém necessários, se pretendemos realmente desenvolver o campo da filantropia e do investimento social no Brasil.”
Palavra chave: estratégia
Uma das abordagens a respeito da filantropia tratada no estudo e reforçada por Marcos é a inserção da filantropia empresarial dentro da estratégia corporativa, ou seja, a ideia de que a empresa deve alinhar ações filantrópicas aos objetivos corporativos.
“Nós entrevistamos os chamados super doadores e percebemos que eles possuem uma estratégia e forma de organização que podemos chamar de filantropia estratégica, isto é, quando as doações filantrópicas geram ganhos para as empresas. Ressaltar isso para o campo é importante, pois rompe com essa ideia de que, em uma empresa, há lucro versus filantropia, como se esse fossem setores à parte”, pontua Marcos.
Diferenças de atuação entre setores
A análise das empresas que mais doaram rendeu reflexões sobre a atuação corporativa durante a pandemia. Houve diferenças, com os setores financeiro, de alimentação e bebidas e de saúde e bem-estar doando mais do que os demais em termos absolutos, mas não necessariamente em termos proporcionais. Além disso, muitos setores doaram para locais onde operam as matrizes, subsidiárias ou filiais, o que revela uma incidência da empresa no que o artigo chama de ‘condições de fatores do ambiente competitivo’, ou seja, com a doação, a empresa cria uma condição favorável para sua atuação junto à comunidade local.
“Nesses casos, a ação filantrópica teria o potencial de fortalecer o relacionamento da organização com as comunidades em que estão instaladas, assim como de melhorar seus laços com colaboradores. Este é o padrão observado das doações realizadas por empresas dos setores de indústria de transformação (79%), alimentação e bebidas (75%), energia (72%), saúde e bem-estar (73%), mobilidade e logística (83%) e varejo (83%). Nesses setores, as doações direcionadas às comunidades do entorno foram registradas por mais de 70% das empresas da amostra”, cita trecho da publicação.
Mais confiança e agilidade
Mais agilidade no processo de tomada de decisões, incorporação dos valores da estratégia corporativa no fazer filantrópico e experimentação de avanços em direção a uma maior cooperação entre doadores e donatários são alguns dos aprendizados citados no artigo.
Marcia Woods, presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) e assessora da FJLES, reforça que a união de toda a sociedade brasileira e do mundo em um mesmo propósito e foco – combater a pandemia e seus efeitos – teve influência clara sobre as ações realizadas e os aprendizados obtidos. “Todo mundo com o mesmo foco facilitou muito a articulação de parcerias, com convergências de resultados bastante inovadores, rápidos e expressivos nos arranjos para fazer as doações.”
Marcia, que integra o grupo de autores do artigo, defende que essa experimentação ocorrida nos primeiros meses de pandemia pode servir como inspiração para repensar a forma tradicional de fazer investimento social corporativo no Brasil. Alguns aspectos observados durante a pandemia foram mais união e proximidade entre diferentes áreas dentro da empresa e envolvimento do alto escalão. “Esse grande entrosamento interno melhorou não só a comunicação para a ação, mas também a própria solução que veio em decorrência disso.”
Os aprendizados envolvem pontos a serem melhorados dentro dos processos das empresas, como as normas de compliance que devem ser obedecidas pelo setor de responsabilidade social corporativa e que, em alguns casos, acarretam empecilhos e até mesmo limitações na hora de destinar recursos a organizações da sociedade civil.
“A articulação de parcerias e arranjos construídos foi muito expressiva e inovadora. O diálogo com organizações da ponta, por exemplo, deixou de ser burocrático e ‘de cima para baixo’ e passou a ser algo mais horizontal, ágil e baseado em confiança. São fatores que nos fazem questionar o quanto realmente precisamos ter processos tão burocráticos para estabelecer parcerias com essas entidades, que atuam com pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso agrega ao processo ou só onera e torna cada vez mais difícil para as organizações arcar com essa carga burocrática e administrativa?”, reflete.
Esse foco comum pôde ser percebido não apenas no âmbito e funcionamento interno, mas também no relacionamento da empresa com organizações sociais, governo, empresas concorrentes e de outros setores.
Entre os desafios a serem superados, Marcos cita que a falta de autonomia orçamentária do setor social da empresa, bem como a ausência de métricas claras e bem definidas para avaliação do impacto social, além da rigidez institucional e, ainda, um certo grau de desarticulação entre os setores dificultam, por exemplo, a avaliação dos resultados advindos dos recursos doados.
Saiba mais
O artigo pode ser acessado na íntegra neste link.
As demais reportagens da série podem ser conferidas nos links a seguir:
– O que a Pandemia nos Contou sobre Doar
– Uso de Dados do Setor Social: Aprendizados na Pandemia e Caminhos para a Interoperabilidade
– O papel e o protagonismo da sociedade civil no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil
– Transparência e prestação de contas ainda são desafios para doadores e organizações, aponta estudo